Nos últimos dias, os holofotes da mídia estão apontados para a morte do torcedor nos arredores do Arruda, logo após o término do jogo entre o Santa Cruz e o Paraná.
Diante de tantos comentários, teses e opiniões, resolvemos fazer um bate-bola com o advogado Fred Dias, enfocando as questões jurídicas.
Fred já fez parte do Depto. Jurídico do Santa Cruz e dedica parte do seu tempo estudando Direito Desportivo. Sim, e lógico, ele é Santa Cruz de corpo e alma.
Segue a conversa:
– Qual o grau de culpa que o Santa Cruz Futebol Clube tem no episódio da morte do torcedor Paulo Ricardo?
É preciso separar as coisas. Existem neste caso três tipos de responsabilidades. A civil, a penal e a desportiva. A responsabilidade civil do clube, qualquer clube, neste caso é objetiva, independe de culpa, mas também são responsáveis a CBF e os dirigentes das duas entidades, conforme reza o Estatuto do Torcedor.
Na esfera penal, a responsabilidade é do autor do fato criminoso e daqueles que se omitiram na possibilidade de impedir que tal ato fosse praticado, de acordo com suas responsabilidades.
Nos dois casos acima, civil e penal, a justiça, através do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa é que definirá os culpados e as penas, não cabendo a nenhum de nós apontar qualquer tipo de responsabilidade neste momento.
No âmbito desportivo, que na verdade é um processo administrativo e não judicial diferente dos casos acima, a responsabilidade dos fatos ocorridos dentro do estádio é do mandante do jogo. O que a legislação desportiva prevê, entretanto, é que o mandante deve comprovar que atendeu a todas as exigências previstas na legislação para que a partida transcorresse e que em caso de tumulto, desordem ou lançamento, possa identificar os infratores para que se exima de sua responsabilidade.
– O STJD puniu preventivamente o Santa Cruz para dar uma resposta à opinião pública ou realmente há base jurídica e legal para punir o clube com dois jogos com portões fechados?
Na verdade não existe previsão na legislação ordinária da punição “portões fechados”. A lei Pelé no seu art. 50 é taxativa quando diz quais as punições que devem ser impostas no âmbito da justiça desportiva. Essas mesmas punições são previstas no Código Brasileiro de Justiça Desportiva, que não é uma lei ordinária, mas uma Resolução do Conselho Nacional do Esporte, ou seja hierarquicamente é inferior à lei Pelé.
Na verdade a punição “portões fechados” existe no Código Disciplinar da FIFA, mas não existe na legislação brasileira.
Somente para as competições em 2014 a CBF passou a incluir em seu Regulamento Geral de Competições (um ato normativo administrativo interno da CBF) um artigo que recepcionava o Código da Fifa no tocante a possibilidade de punir com “portões fechados”.
Entretanto, isso é totalmente discutível no âmbito jurídico já que uma lei inferior não pode se sobrepor a uma superior hierarquicamente, nem podemos recepcionar legislações estrangeiras sem a chancela do Congresso Nacional.
Dessa forma, entendo que a punição dada de forma preventiva ao Santa Cruz, além de ilegal é uma antecipação de julgamento, sem direito de defesa e sem o devido processo legal, ferindo princípios constitucionais e certamente foi prolatada em virtude da gravidade da situação (a morte de uma pessoa) na ânsia de uma resposta rápida das autoridades competentes, sobretudo em virtude da ampla cobertura internacional da tragédia ocorrida.
– O Atlético Paranaense e o Vasco receberam alguma punição pela briga na última rodada do Brasileirão 2013 ou, como não morreu ninguém, o STJD fez vista grossa?
Ambos foram punidos rigorosamente. As penas só foram reduzidas após recurso ao pleno do STJD. O Vasco teve a pena reduzida de oito perdas de mando (sendo quatro com portões fechados) para seis mandos – três deles sem torcida. Já o Atlético, punido inicialmente com a perda de 12 mandos – seis com portões fechados -, teve a punição diminuída para “apenas” nove partidas – quatro sem a presença de torcedores.
O STJD também decidiu reduzir as multas aplicadas a ambos os clubes. O Vasco, multado em R$ 80 mil no primeiro momento, passou para R$ 50 mil. Os paranaenses, que inicialmente foram condenados a pagar R$ 120 mil, passou para R$ 80 mil.
Reafirmo o posicionamento, inobstante as punições acima, que ainda mais em 2013, não há previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro para a punição “portões fechados”.
– Qual medida e quais argumentos o Santa Cruz precisa usar para reverter a punição do STJD?
Pelo que consta, o Santa Cruz foi denunciado nos seguintes artigos: 191 – inciso I; 213, I e III e parágrafo 1º e 211, caput, na forma do artigo 183 todos do CBJD.
O art. 191, inciso I, trata de “Deixar de cumprir, ou dificultar o cumprimento de obrigação legal” Nesse caso deve ser apurado na leitura da denúncia qual obrigação legal não foi cumprida ou teve seu cumprimento dificultado pelo clube.
A pena para a condenação neste artigo é multa de R$ 100,00 (cem Reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), com fixação de prazo para cumprimento da obrigação.
O art. 211 trata de “Deixar de manter o local que tenha indicado para realização do evento com infra-estrutura necessária a assegurar plena garantia e segurança para sua realização.” A pena em caso de condenação é multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais), e interdição do local, quando for o caso, até a satisfação das exigências que constem da decisão.
Nesse caso deve ser apresentado pelo Santa Cruz, caso existentes, os laudos da Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, CBF e demais órgãos que aprovaram e atestaram as condições do clube em realizar eventos no estádio.
Já o artigo 213, I e III, trata respectivamente de tumulto e (ou) desordem na praça esportiva e lançamento de objeto no gramado. Neste caso, a própria lei informa que “A comprovação da identificação e detenção dos autores da desordem, invasão ou lançamento de objetos, com apresentação à autoridade policial competente e registro de boletim de ocorrência contemporâneo ao evento, exime a entidade de responsabilidade, sendo também admissíveis outros meios de prova suficientes para demonstrar a inexistência de responsabilidade.”
O art. 183 apenas informa que quando o agente, mediante uma única ação, pratica duas ou mais infrações, a de pena maior absorve a de pena menor, ou seja, a pena maior é que deve ser cumprida, mesmo que o clube venha a ser apenado em todos os artigos.
De toda forma, como já mencionei acima, o grande problema é a gravidade do fato, pois estamos falando da perda da vida de um ser humano e da proximidade da copa, mas também entendo que o departamento jurídico do Santa Cruz é formado por pessoas competentes que saberão conduzir o processo da melhor forma para o clube.
– Qual o artigo da Justiça Desportiva Brasileira que prevê jogos com portões fechados?
Não existe essa previsão na legislação ordinária (lei Pelé) ou no Código Brasileiro de Justiça Desportiva, apenas no Regulamento Geral de Competições 2014 da CBF (que é um ato administrativo da entidade) que recepcionou a possibilidade deste tipo de punição conforme reza o código disciplinar da FIFA.
– Por que o Estado foi rápido em passar toda a culpa do episódio para o Santa Cruz? O que a Polícia deveria ter feito e não fez?
Penso que naquele momento e com todo o aparato policial, a polícia poderia ter ordenado o cerco ao estádio e solicitado a guarda patrimonial do clube que fechasse os portões e iniciasse uma varredura no mesmo.
Não há como de forma subjetiva adentrarmos no mérito do Estado passando a culpa para um ou outro, ou ainda, os motivos que levaram a polícia a não agir naquele momento do fato. Talvez o fato do Estatuto do Torcedor trazer as figuras dos responsáveis pela segurança pública e policiamento como figuras necessárias para elaboração do plano de segurança para o torcedor e a eventual responsabilização destas pessoas nas esferas civis, tenham levado a esse posicionamento, mas entendo que estas perguntas devam ser feitas às autoridades constituídas.
– O que a torcida pode fazer, neste momento, para ajudar o clube?
Muito tem se falado em torcedores entrando com ações contra a interdição preventiva, para garantir o direito de assistir ao jogo, mas neste momento, além da dificuldade de serem recepcionados no âmbito judicial local, esses processos certamente não teriam tempo hábil de serem julgados até a data do jogo.
No meu entendimento, neste momento a melhor forma é tentar mostrar nos meios de comunicação e nos jogos que a torcida do clube não pode ser equiparada a pessoa que praticou tal ato e procurar tentar afastar a mancha na imagem que ficou do clube no cenário nacional em virtude do fato praticado.
– E o Santa Cruz, pode “dançar” nessa história?
Creio que em virtude da gravidade da situação, a perda de uma vida, e pela proximidade da Copa, com todas as atenções internacionais voltadas ao Brasil, o clube deverá sofrer uma punição severa, nos moldes das sofridas por Vasco e Atlético Paranaense – que pode ser ainda maior se o clube não comprovar que cumpriu as exigências que a procuradoria requisita na denúncia ou identificar os infratores – principalmente no primeiro julgamento, sendo que no segundo a tendência é termos uma revisão da punição para diminuí-la. Mas penso que independentemente do clube vir a ser punido ou não, deve ser apurado a responsabilidade de todos os entes e agentes previstos no Estatuto do Torcedor e que passemos a exigir que todos os estádios do Brasil, não só o Arruda, sejam fiscalizados de forma mais rigorosa, para que eventos como esse não voltem a ocorrer.
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P.S. Na próxima sexta-feira, com novo layout e nova diagramação, estaremos de volta ao antigo endereço: www.blogdosantinha.com.br