Uma obsessão: O acesso

Amigos corais, sem obsessão, o sujeito não faz sequer a feira.
Falo, obviamente, do Santa Cruz.
Começamos o campeonato estadual como reles coadjuvantes. Na Paixão de Cristo, seríamos o bilheteiro, e olhe lá.
A muito custo, dizia a crônica esportiva, chegaríamos em quarto lugar.
O título já era do Sport, vinte rodadas antes da tabela. O clube que recebe da TV uns R$ 35 milhões por ano, que é patrocinado pela Adidas, só treinava depois de tirar a foto de campeão. Os jogadores receberam o bicho antes de chegarem as chuteiras novas, feitas na Europa, com couro de búfalo criado em cativeiro.
Enquanto isso, nós fazíamos vaquinha para ficar entre os vinte da Timemania. Com os R$ 350 mil mensais em 2015, garantiríamos pelo menos metade do salário do elenco. Teve gente que vendeu a Variant 1977 para ajudar.
Para resumir, o Santa Cruz foi foi o vigésimo colocado na Timemania e papou a taça de Campeão Estadual de 2015.
Pois bem.
Começamos a Série B como sempre. Aquele cão pulguento, que fica olhando os galetos rodarem na maquininha.
Isso, se o tricolor for bem de vida, como Gerrá, Robson Senna, Esequias, Inácio França.
Se for um tricolor bolsa-família, o negócio é ficar olhando o galeto assar na brasa, com 200 kg de fumaça para encher o bucho dele e dos filhos.
O Clube Náutico, por exemplo, começou a Série B com 377 pontos à nossa frente. Eu não podia ver um alvirrubro passando de carro, que ele parava seu Citroen, abria a carteira e dizia:
“Olha aqui o que temos sempre – dinheiro. Para a elite, não falta dinheiro. Já estamos na Série A de novo, porque nascemos para a elite”.
O alvirrubro seguia para o restaurante Leite, para comemorar suas vitórias e sua maldição, o hexa.
Agora eles têm uma nova maldição – a Arena, que vai minando a já frágil Torcida Citroen.
Eu não respondia. Seguia para o bar Sukito, defronte ao 13 de Maio e pedia uma cerva, um tira-gosto e um quartinho. Juntando tudo, dá R$ 15,00 + R$ 2,00 do garçom.
Pois bem de novo.
O jogo de ontem foi sofrível
Não fumo, mas ontem fumei uma carteira de Derby.
Quem se preocupa com a saúde, durante um jogo do Santa Cruz, torce pelo time errado.
Nada funcionava direito e o mais pessimista já olhava para o placar que não existe e pensava: um empate vai ser uma tragédia. E seria.
Ontem foi a divisão do campeonato. Um empate, e estaríamos de novo na lona.
Mas o time agora tem Grafite, e aquele noivado eterno dele com a bola.
Diria que Grafite não teve direito a mamadeira, peito de mãe, papa. Deram a ele a bola e diseram: Te vira!
O negão foi lá e fez o que aprendeu na vida – driblar as broncas e criar vitórias.
O fato é que se instalou em mim e na massa coral, uma reles, simples e canina obsessão vira-lata: O acesso à Série A.
Estar entre os 20 melhores clubes do país é nosso dever moral, cívico, existencial.
Se fosse vivo, o filósofo Sartre diria:
“Le Santa Cruz cest la Série A”.
O poeta Garcia Lorca não deixaria por menos:
“Puro como la negra noche – Santa Cruz!”
Aos incomodados com o jogo ruim de ontem, lembro que o Santa Cruz é o time mais improvável do Brasil.
Produzimos Givanildos, Rivaldos, Ricardo Rochas, Caça-Ratos, Thiago Cardosos, fazemos ressurreições improváveis, com Dênis Marques e descobrimos o óbvio ululante: havia um craque jogando no fim do mundo, apaixonado pelo Santa e que pensava em voltar.
ÔôôôO o Grafite chegou….
Então, lembro que, de ontem, trouxemos algo maravilhoso – a vitória e os três santos pontos.
Ganhamos títulos improváveis, passando o chapéu, fazendo rifas, jantares, bingos.
Do alto da minha prosopopéia, já começo a sentir aquela fisgada emocional coral e aquela certeza:
Vamos subir.
Até amanhã, em Feira Nova, com a diretoria e parte do elenco.

“O Santa Cruz tomou uma transfusão de sangue!”

Quando desci para comprar o pão, na quarta-feira, o jornal “AquiPE” tinha uma foto de Grafite na capa e o título:

“O artilheiro está de volta”.

Caso raríssimo: o jornal foi mais importante que o pão.

Depois do meio-dia, já fui me concentrando para a cerimônia da chegada do craque: 15h30, no Arrudão.

Às 14h, liguei para Esequias.

“Já estou a caminho do Arruda”, disse. O bicho é apressado mesmo.

Na sede, uma efervescência. Fui à sala para atualizar minha situação de sócio, mas não cabia nem a sombra de ninguém.

No bar de Abílio, aquela agitação.

Após dar uma boa golada, Esequias solta uma frase sonora e musical:

“O Santa Cruz se reencontra com o Santa Cruz”.

Começa a falar sobre a história do Santa, sua origem negra, humilde, batalhadora, e arrematou.

“Esse negro Grafite é a cara do Santa”.

Foi uma sorte imensa ter conversado com Esequias. Minutos depois, uma amiga de uma TV me pegou para uma entrevista. Usei os mesmos argumentos do meu amigo e devem ter me achado inteligente pacas. Valeu Esequias!

Depois de circular por tudo que era canto, chegamos às sociais, lotadas. Os vendedores gritavam a plenos pulmões:

“CERVEJA, Coca e água!”

Eles exageravam na palavra “CERVEJA” porque sabiam que aquele momento era único, sem proibição. A massa coral se esbaldou nas Itaipava geladíssimas.

Foi uma linda e tanto, divisora de águas. O clube realmente está se modificando. Marketing, comunicação e futebol funcionaram numa rara e perfeita harmonia.

“CERVEJA, Coca e água!”, insistiam os vendedores.

Até a TV Globo, que adora uma exclusividade, exibiu, no Globo Esporte, a entrevista que Grafite deu à TV Coral. Golaço!

Na volta, dei uma espiada na entrevista coletiva. O Negão fala bem que só.

Dei um abraço no eterno Rodolfo Aguiar, que soltou o arremate:

“Hoje o Santa Cruz tomou uma transfusão de sangue!”

Sangue negro, pois, como o das nossas origens.