O diabo é quem vai

Sexta-feira, início de noite. Não há dúvidas de que esse é o horário ideal para jogos de futebol. Não entendo como torcedores, dirigentes, radialistas, autoridades constituídas, colunistas, técnicos de nosso Brasil varonil desperdiçaram todo o século XX e alguns anos do XXI sem perceber que, esse sim, era o horário mais propício para dois times profissionais que disputam o Futebol association entrarem em campo com garbo e afinco.

Não há condição melhor: o sujeito sai do trabalho direto para o estádio, deixa para comer depois e ainda dá tempo de fazer uma frente com a família no restinho da noite. Dá, por exemplo, para ir na esquina comer uns espetinhos com a esposa amada, enquanto os pirralhos ficam em casa jogando videogame. Se os pirralhos forem pirralhos demais, o torcedor pode comprar uns pastéis de vento no caminho e levar para casa para comê-los com guaraná enquanto assiste o finalzinho de Globo Repórter em companhia de sua senhora no recesso do lar.

Graças aos executivos da programação da Sportv (abençoada sejam as Organizações Globo), agora há jogos nesse horário tão conveniente para a torcida brasileira.

Agora, perfeito mesmo é se a partida da sexta, às 19h30min, estiver marcada para a casa de caralho. Para quem não conhece, trata-se do endereço físico da Arena Pernambuco.

Nesse caso, o torcedor poderá, antes de vibrar pelo seu time, experimentar o frenético trânsito da Abdias de Carvalho, onde atualmente está o melhor engarrafamento de Pernambuco, com direito a uma sensacional vista panorâmica da interminável fila de carros e caminhões na BR-101. Imperdível. E tudo isso pelo preço de apenas um ingresso de arquibancada!!!

Quem preferir fazer outro caminho, também terá acesso a mais entretenimento, afinal quem botou o “estádio da Copa” na encruzilhada entre o fim dos tempos e o fim do mundo pensou em tudo, afinal o que podíamos esperar de quem tem ideias assim tão brilhantes.

A turma que optar pelo metrô, por exemplo, terá a oportunidade de viver a experiência de pegar o trem na hora do rush mesmo sem ter necessidade para tal. É uma forma de compartilhar a visão de mundo – ou, pelo menos, de transporte público – das massas trabalhadoras. Quem sabe quantos mestres em sociologia, PhDs em urbanismo e doutores em antropologia serão gerados dessa aventura sobre trilhos?

Algumas das promoções concebidas conjuntamente pelo consórcio Arena Pernambuco+Organizações Globo/SporTV+CBF  são obviamente inspiradas pelo movimento slow food e similares, aqueles que pregam menos pressa, menos agitação e menos ansiedade para se obter mais qualidade de vida.

Sei de dois amigos rubro-negros que, numa dessas partidas do time deles na Arena, entraram no ônibus cedido pela diretoria do clube para os sócios em dia poderem ir à longínqua arena. O ônibus partiu  às 17h30min. O jogo era às 19h30min e a saída foi da Ilha do Retiro. Quando o time entrou em campo, eles estavam no veículo, socializando junto a mais 50 torcedores. Chegaram no intervalo da partida, já sem pressa nenhuma. Perderam 45 minutos de jogo, é verdade, mas aprenderam algo fundamental sobre a vida, o tempo e a importância relativa das coisas. Se não aprenderam é porque não souberam aproveitar a oportunidade.

Estou citando esse fato vivido pelo meus amigos do time rival para que aqueles tricolores que estão alugando kombis e vans para fazer essa excursão aos arredores de São Lourenço da Mata (Saint-Laurent de la Forest, como diziam durante a Copa), possam viver a plenitude dessa vivência.

Eu, pessoalmente, pretendo abrir mão disso tudo em prol de terceiros. O melhor é que não precisa ter receio de estar prejudicando o clube, afinal o pacote dos cincos jogos na Arena garante ao Santinha, no mínimo, R$ 250 mil livres, sem contar a reforma no gramado do Arruda que será feita pela Arena. Se a renda for de R$ 100 mil, a Odebrecht que se vire para pagar os 250 contos pro Santa. Acima de meio milhão, vai ter rá-rá. Por isso, ficarei em Recife tranquilo, sem peso na consciência.

Vão e depois me contem.

Tijolaço pode?

Ainda não completou um mês a morte do rubro-negro atingido por uma privada jogada do alto do estádio do Arruda. Pois bem, 22 dias depois do assassinato do rapaz na rua das Moças, um paralelepípedo tamanho GG voou das arquibancadas de outro estádio pernambucano, estilhaçou o vidro traseiro do carro do quarto árbitro de uma partida da série A, amassou o capô e foi parar no banco de trás.

Se o árbitro da partida e os bandeirinhas estivessem lá – pois nesse carro que eles foram do hotel para o estádio – alguém tinha passado dessa para melhor.

A coincidência das ações e do contexto – objetos pesados jogados do alto de estádios, minutos depois de partidas de futebol realizadas na mesma cidade – seria o bastante para que o fato merecesse bastante destaque e repercussão.

Nada disso. Quem usou os microfones para berrar que o Santa Cruz tinha de ser punido, calado ficou. As autoridades de segurança que apontaram o clube como culpado na primeira entrevista coletiva, não apareceram, não procuraram responsabilizar ninguém. Nenhum chargista se meteu a engraçadinho. Nenhum fotógrafo ou cinegrafista procurou outro ângulo para fotografar o carro (esperamos 48 horas por um foto melhor do que essa porcaria que ilustra a postagem), não apareceu um investigador para tentar adivinhar de onde foi jogado o pedregulho.

Na rádio, um comentarista – ou vários deles – disse com razão que não dá para comparar uma morte com um vidro quebrado. Não, não dá. Isso qualquer um pode compreender. O que é absolutamente incompreensível é que ninguém relacione um fato com outro. Não se trata de relacionar alhos com bugalhos.

Sinceramente, não acreditamos aqui no blog que a mídia, o ministério público e a polícia estejam de proteção com o Sport. Não é isso. Não é simples assim, apesar do clube se beneficiar com o silêncio.

É provável que o governo estadual não queira barulho com isso a tão poucos dias da Copa do Mundo. Compreensível, mas não é a coisa mais sensata a fazer: novamente “estão esperando morrer alguém” para usar o velho clichê. Quando a “merda virar boné” (agora este precário escriba recorre a um dito popular), como já virou há 22 dias, talvez já não baste botar a culpa no clube e ponto final, como fizeram na manhã do sábado pós-privada.

Já o silêncio dos profissionais da mídia, este eu não entendo. Será que consideram normal um tijolo voar da arquibancada, do mesmo jeito que não estavam nem aí quando tudo quanto é coisa era jogada das gerais do Arruda antes de 2 de maio? Marcaria um xis nesse resposta, caso fosse uma questão de múltipla escolha.

Ou será que precisam ser mobilizados por uma tragédia óbvia para deixar o estado de acomodação e a preguiça? Xis também.

É provável que raciocinem desse jeito: privada é notícia, tijolo acontece todo dias, tijolo pode”. E tome xis.

Não conseguem entender nada vezes nada da equação violência+futebol? Todas as respostas são verdadeiras.

Não sou hipócrita: torço para que o Sport seja punido, que se lasque, perca mandos de campos, jogue para ninguém. Mas sei que isso não vai resolver nada.

É o clube que paga as fortunas exigidas pelos jogadores, entrega as placas do seu estádio para a TV comercializar, paga as taxas que a CBF exige a cada partida, expõe sua marca e sua imagem, quase sempre é roubado pelos seus próprios cartolas. O clube está na ponta da corda que rompe quando os Três Poderes da República, a emissora da TV, os patrocinadores do campeonato, FPF e a CBF  – nenhum deles dependem dos tostões que entram pelas bilheterias – fingem não ter nada a ver com isso.