Texto do nosso colaborador Zeca*
Um jornalista perguntou à teóloga alemã Dorothee Sölle o que era a felicidade. Resposta: “Como a senhora explicaria a um menino o que é felicidade? Não explicaria. Daria uma bola para que ele jogasse.”
O futebol desafia o elemento racional que habita em quase todos nós. Essa dimensão da felicidade infantil é logo sobrepujada pela realidade do torcedor adulto, pelas tristezas e alegrias que os resultados de seu time lhe impõem. Isso justifica uma frase de Nelson Rodrigues, o maior cronista de futebol brasileiro: “Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos.”
O futebol é a vida e, assim como esta, é alegria e pesar, esperança e raiva, paixão e razão, sanidade e loucura.
E ser torcedor do Santa Cruz acirra ainda mais essa questão.
Talvez fosse necessária uma filosofia do futebol, uma sociologia futebolística ou uma antropologia da bola para explicar a paixão louca desta torcida. O futebol compõe um mosaico de lembranças e expectativas que preenche a vida do torcedor de sentido. Lembro quando vi Pedrinho, Joel Mendes, Gabriel, Ramón, Henágio e Mancuso jogando. Meu pai dizia que eu tinha visto Nunes jogar quando era muito criança. Infelizmente esta lembrança se apagou.
Estas lembranças – somadas à entrada no Arruda, ao calor da torcida, ao espetinho e ao famoso cachorro-quente, às cervejas no Abílio, às discussões durante e após os jogos – constroem uma identidade que se torna universal quando vestimos as três cores do Santinha. O filósofo alemão Martin Heidegger entendia que o que define o ser humano são elementos estruturais que ele chamou de existenciais. O principal existencial é o fato de todos nós sermos um ser-no-mundo. Mas, talvez por desígnio dos deuses do futebol, alguns recebam o privilégio de ser um ser-para-o-futebol.
O futebol – seja no Brasil, Argentina ou Inglaterra, por exemplo – causa a catástrofe da nossa racionalidade. Mas isso não é ruim. Ao contrário, permite que realizemos a totalidade de nossa humanidade. Uma partida de futebol, mais especificamente, revela o que realmente somos. É nestes noventa minutos cruciais que rezamos, torcemos, berramos, choramos, gritamos de alegria e comungamos com o universo todo a nossa existência. O grito de gol – e mais ainda o grito de campeão – coloca a todos na mesma dimensão humana. O nosso eu, tão pequeno, se torna grandioso. Torna-se parte de uma energia que flui dentro e fora.
A paixão por um time revela a necessidade humana de sentido. E mais ainda: a nossa consciência de que o destino se constrói a cada dia, a cada minuto, a cada segundo. Um pênalti aos 48 minutos do segundo tempo – e que pode decidir um campeonato – nos coloca num abismo, na impossibilidade de realizar o ato, mas na esperança de que ele seja do modo como desejamos. O famoso filósofo da bola, Neném Prancha – que foi roupeiro do Botafogo – afirmava: “O pênalti é tão importante que devia ser cobrado pelo presidente do clube.”
É no futebol que assomamos nossas esperanças e desejos universais. A vida é um jogo assim como o futebol, daí essa pertença universal que todo e qualquer torcedor sente. Assim, as trapaças, as regras, a justiça, os equívocos e acertos de uma partida de futebol só são compreensíveis porque assim o é na vida.
As brincadeiras pós jogo, o medo de perder, o anseio pela vitória nada mais são do que elementos que constituem nossa existência e que o futebol traduz tão bem. Poderia ser qualquer outro esporte, mas para nós, brasileiros e tricolores, é na bola rolando que se revela a própria vida.
*Zeca é filosófo, músico, metaleiro e tricolor coral santacruzense das bandas do Arruda