Polícia para quem?

Não é indignação o que estou sentindo com o acesso da torcida no famoso Portão 9. É a mais pura raiva mesmo.
Depois alguém escreve sobre a importante vitória. Que encontre inspiração.
Eram 20h quando cheguei com meu ingresso para ver um jogo decisivo do meu time. Ou seja, estávamos a meia hora do início da partida.
Havia um caos completo. A rua estava numa escuridão quase completa. Cenário perfeito para confusão, roubos, brigas.
Falam rios das “Torcidas Organizadas”, mas ninguém lembra que temos uma “Polícia Desorganizada”, incapaz de organizar o acesso de pessoas com ingresso a um evento esportivo.
A cada minuto, a multidão se amontoava, porque ninguém saia do canto.
Ficamos parados, por vários minutos, até que saí e fui para perto da entrada, ver o que estava acontecendo.
Os PMs da Tropa de Choque estavam retirando todas as barras de ferro que botam, em um jogo ou outro, para organizar a fila, e jogando na calçada!
Tudo isso no breu.
Era inevitável que, quando abrissem para a massa entrar, haveria mais confusão.
Minha sorte foi ter dado uma de jornalista, para ver a merda toda.
No meio desse caos completo, uma quantidade imensa de carros, no meio do povo que estava do lado, esperando algo se resolver.
Quando a PM liberou a massa, foi correria, gente caindo, chorando.
“Painho, painho!”, gritou um jovem, ao ver seu pai quase sendo esmagado. O homem se levantou e saiu correndo.
Foi assim que a torcida do Santa entrou ontem, nas arquibancadas. Tropeçando, correndo, esbaforida, tentando se proteger. Uma manada. Cada um tentando escapar de uma queda. Isso implica estudo, planejamento, previsão de torcida, reconhecimento do local.
Eu vivo batendo nesta tecla. A PM só vai trabalhar de forma decente e ordenada quando criar um batalhão não de CHOQUE, mas de acesso e acompanhamento de eventos esportivos.
Consegui entrar, porque no meio disso tudo, um sujeito afastou a barra de ferro e algumas pessoas conseguiram passar.
Quando passamos pelas catracas, parecíamos uns refugiados que tinham pisado em um solo seguro.
Teve gente entrando com 15, 20 minutos depois do jogo, e repetindo:
“Tem meio mundo de gente do lado de fora”.
Na saída do estádio, vocês sabem o que mais atrapalhava o fluxo da massa coral: a escuridão e os vários ônibus da PM.
Ou seja – o único lugar do entorno do Arruda que não poderia estar escuro, era na saída do Portão 9.
O único lugar que vários ônibus não deveriam estar, era junto da saída do Portão 9.
Sei que nem o governador, nem o comandante da PM, nem ninguém vai fazer porra nenhuma.
Torço para que o presidente do Santa Cruz Futebol Clube, Alírio Moraes, lidere um movimento por uma “Polícia Organizada” em Pernambuco, antes que tragédias aconteçam.
Até isso, vou perguntar seguidas vezes: Polícia para quem?

***
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A alma de um time em um gesto

Amigos corais, o futebol tem lances que são eternos. Lances e gestos.
Poderia passar a manhã lembrando alguns. Vou a um dos mais inesquecíveis.
Final da Copa de 1958, na Suécia. O Brasileiro jamais tocara na taça Jules Rimet. Final conta os donos da casa. Aos quatro minutos e pouco, gol da Suécia. Quem não gelou, lembrando da tragédia de 1958. Um jogador brasileiro que não identifico pega a pelota e Didi sai do meio de campo para buscá-la. Ele vai com ela segurando com a mão esquerda, altivo, dono de si. Vai caminhando mansamente, quase assobiando algum chorinho, como quem diz aos demais jogadores – “calma, que o jogo nem começou direito, vamos virar essa partida já já e dar olé nesses Zé Ruela”.
Resultado: apresentação de gala do Brasil. Vitória por 5 x 2 e o primeiro título mundial.
Não foi um lance, foi um gesto.
Mas não posso me estender. Já é final início da tarde e a cidade do Recife respira as três cores corais. Os telefonemas se multiplicam, o zap-zap está em tempo de entrar em colapso. Twitter, facebook estão feito a gora, gritos para chamar o vizinho para tomar umas, enfim. Tudo caminha para a Avenida Beberibe, logo mais à noite. São milhões de combinações de horários, lugares, botecos, barracas, caronas, desculpas no trabalho para sair mais cedo, além dos efeitos colaterais, como a absoluta falta de concentração para abotoar até a camisa, nervosismo para botar açucar no café ou para discutir qualquer coisa lógica. Se sua mão já está tremendo, não se preocupe, você é absolutamente normal, torce mesmo pelo Santa.
E no meio deste frenesi, um lance não me sai da memória.
O jogador do Bahia se prepara para bater a falta – perigosíssima, por sinal.
Nosso zagueiro, Alemão, está na barreira. Ele sabe que o lance pode ser fatal para o Santa, precisa fazer algo.
Então ele resolve provocar.
Começa a bater com a mão no peito esquerdo, olhando fixamente para o jogador do Bahia. Pela TV, dá para ver ele gritar:
“Chuta aqui, é! Aqui!”
Ele fica repetindo com força, e batendo no escudo coral. Parece tomado. Não tira o olho dos olhos do adversário. Está em transe. Ao seu lado, está nosso artilheiro Grafite, um mero coadjuvante.
Alemão segue aos berros. Foram alguns segundos, mas me pareceram intermináveis minutos.
“Aqui! Chuta aqui!”
Ninguém, em sã consciência, quer levar uma bicuda no peito. Quem joga pelada, sabe que isso dói pacas.
Mas Alemão, ali, preferia sentir a dor no corpo, do que sentir a dor da massa coral, em caso de um gol baiano.
Na hora me ocorreu estar presenciando um desses gestos inesquecíveis do futebol. Ali, Alemão sabia que estava sendo um dos milhões de torcedores do Santa Cruz, defendendo a barra do paredão Thiago Cardoso.
O jogador do Bahia, certamente querendo dar um troco, não chutou no ângulo, como costuma fazer. Pegou ar e acertou uma bicuda no nosso Grafite, que ficou vendo estrelinhas. A bola não chegou à barra e o jogo seguiu.
Para mim, o lance da falta, acompanhado do gesto do nosso zagueiro, definiu uma mudança definitiva nesta reta final de Série B.
São 11 homens correndo, chutando, brigando, batendo no peito, por causa de uma nação de apaixonados. Não por acaso, ele ficou batendo do lado do coração e do escudo coral.
Quem pensa que o jogo contra o Oeste vai ser fácil, pode tirar a sua Shinerayzinha da chuva. Vai ser osso duro, e teremos que lutar muito.
Mas até o mais depauperado torcedor coral repete isso, a cada rodada:
“As coisas nunca foram fáceis para o Santa”.
Mas o espírito do time, para mim, está representado no gesto de Alemão, batendo no peito e pedindo para levar um bombaço.
Ali estava alma do Santa Cruz, nesta jornada épica, para voltar à Série A.
Vamos todos ao Arruda, arrancar mais esta vitória.

A batalha da PM contra a festa nas arquibancadas do Arruda (Parte 1)

Amigos corais, meu lugar sagrado na arquibancada, junto ao escudo do Mais Querido estava me incomodando há algum tempo.

Não sei o que era, mas uma espécie de impaciência com a morgação.

Em muitos jogos, eu sentia falta da vibração da torcida, de músicas para empurrar o time. Via aquela multidão da Inferno Coral calada, ficava invocado, começava a puxar um coro que ninguém seguia. Como diz o Tom Zé, “Que porra!”

Antes de começar aquele jogaço contra o Bragantino, tomei uma decisão fundamental – fui para o lado esquerdo do estádio, onde estavam os bravos torcedores do “Portão 10 – Avante Santa Cruz”. Vou ver se o negócio ali é mais animado, foi o que pensei.

Era o único local da arquiba que tinha algumas bandeiras, música (um sujeito virado num trompete), bandeirolas e o principal – um bando de malucos que cantava e pulava o jogo inteiro.

Isso mesmo, camaradas. Durante 90 minutos os caras não aliviam.

Fiquei logo amigo do Lucas Souza, um camarada bem novo, sorriso largo, que ficava se mexendo pra todo lado, cantando, vibrando.

Mas o que me espantava era a espontaneidade. Ali, o maestro era a paixão coral.

Em vários momentos, a turma da “Portão 10” começava a puxar uma música e daqui a pouco a arquibancada inteira, sociais, estavam seguindo o mesmo canto. De arrepiar.

Foi graças a esse encontro, e aos papos com Pablo, que pude entender a luta desta pequena e raçuda torcida, para levar alegria e festa ao Arruda.

Breve história

Resumindo tudo, a Portão 10 é uma torcida organizada do estilo barra brava (como se vê nos principais estádios da América do Sul, onde a galera canta antes, durante e depois do jogo, seja qual for o resultado). Nasceu em 2007 com o nome de “Avante Santa”.

Passou por inúmeras dificuldades, parou de funcionar em 2012 por “vários problemas”, inclusive com a “principal organizada do clube”, que não vem ao caso destrinchar aqui, mas acabou firmando seu espaço, crescendo e ganhando a simpatia da massa coral. A história é bem bacana, inclusive pela consciência que os caras têm de que o Santa é um clube popular, e não pode se afastar nunca de suas origens.

Os caras têm pulmões de madeira. Também levam bandeirolas (coisa antiga nos estádios), além de bandeiras com frases voltadas para a cultura do clube. Recentemente, começaram a fazer paródias, como era costume da gloriosa e agora exilada Sanfona Coral.

“Seguimos na luta pelo diferente para trazer novamente nossa antiga torcida”, diz Pablo.

Perdão pelo trocadilho, Pablo, mas é uma torcida sem sofrência.

Tudo muito bom e bonito, é o que o leitor coral vai pensar.

Que nada, meus amigos. Eles enfrentam uma batalha, a cada jogo para driblar o “pode não” da PM.

PM: A tropa da morgação

A torcida do Santa não pode entrar ao estádio com papel picado, bandeira (por menor que seja), bandeirola, bobina de papel higiênico, nada de pirotecnia em geral, pano, enfim.

“Além da recorrente truculência e ignorância, sofremos com a censura em cima dos nossos trapos (bandeiras com frases que ficam na mureta) como “Sociedade Alternativa” e “Coral Antifa””, prossegue Pablo.

Ou seja, a PM “escolhe” o que deve ou não entrar, sem argumento algum, sem embasamento. Depende do humor, sem nenhum documento que defina critérios. Na linguagem jurídica, o nome disso deve ser “protocolo”.

“Além da recorrente truculência e ignorância, sofremos com a censura em cima dos nossos trapos (bandeiras com frases que ficam na mureta) como “Sociedade Alternativa” e “Coral Antifa”, tendo que aceitar as bandeiras que eles decidem deixar entrar, sem darem nenhum argumento ou embasamento para as proibições”.

“Além de termos as mãos atadas em relação aos artefatos festivos, como papel picado, bobinas e papel higiênico, pirotecnia em geral e principalmente nossas bandeiras (que por décadas foram marcantes na característica da torcida coral e pernambucana). Tudo com o argumento de que são “armas” para aqueles que eles não prendem”.

Depois da vitória, da comemoração pelos 3 x 1 contra o Bragantino, ficamos conversando um pouco na arquibancada, cheios de alegria.

Pablo então soltou uma frase que me parece a marca deste período absurdo em que vivemos:

“A batalha dos caras é contra a festa”.

Eles estão ganhando, mas a torcida do Santa tem a arte de resistir.

“Avante Santa, olê olê olê…!”

Sábado coral

Amigos corais, imaginemos a cena ideal. É sábado, as chuvas deram uma pausinha, o dia está exageradamente belo. Você tem saúde, algum dinheiro no bolso, e, tirando os problemas normais da vida, você não está vivendo nenhum drama espetacular. Nenhuma tragédia faz parte deste dia. E às 16h30, o Santa Cruz joga, em pleno Arruda.

Acrescentemos um ovo de codorna ao seu caldinho de feijoada – você vive no Recife, ou próximo ao Recife. E pode ir ao jogo. E vai. E sorri, com uma certa vaidade, ao saber que o estádio do seu clube não é uma opulenta e desalmada Arena, a vinte ou trinta quilômetros de sua casa. Seu estádio é o Arruda, onde certamente seu pai ou seus irmãos ou parte dos seus amigos sorriu, sofreu, chorou, amou. Cada pedaço daquele colossso tem cheiro, memória, vida.

Seu estádio está encravado na Zona Norte do Recife, a mais bela da cidade, com seus morros e sua história, em plena Avenida Beberibe, não na Avenida Deus é Fiel (endereço da Arena Pernambuco).

Se você torce pelo Santa e não agradece por esta combinação de fatos ideais, me perdoe, meu amigo, mas você está sendo ingrato com a vida. E ingratidão cobra um preço enorme.

Como não sou chegado a ingratidão, compartilho meu sábado coral.

Saí de casa às 14h em ponto. Mal chego ao Parque 13 de Maio, passa um Avenida Norte/Macaxeira. A cobradora me dá o troco saboreando uma delicosa “quentinha”. O ônibus quase não para e rapidinho estamos na encruzilhada. Resolvo descer, para tomar alguma cerva com algum amigo, já que marquei com Esequias às 15h. Dou uma passeada, tem um trio de forró, aquela agitação, eu só ficaria se fosse a finada Sanfona Coral. Debreei.

Fiz o contorno, voltei. Gosto de caminhar, mas eu só pensava na gelada. Precisava tomar uma atitude. Passa um Dois Unidos/Prefeitura. Mal entrou no veículo, passam uns batedores a todo vapor, como se tivessem escoltando algo muito importante, um rei da Inglaterra, o Papa Francisco ou aquela mulher da propaganda da Itaipava, a Verão.

Era mais que isso – a escolta do ônibus coral, com os atletas e comissão técnica, patrimônio da torcida mais apaixonada do Brasil.

“Esse ônibus ainda é o velho. O novo vai chagar mais tarde, com Grafite dentro”, me disse o motorista, com um riso de satisfação.

Ele, por sinal, está mais bem informado que eu.

Quando o ônibus passou defronte ao bar Dragão, pedi para dar uma paradinha.

“Desce por aqui mesmo”, disse o motorista.

Desci pela frente. Quem disse que neste mundo não há cortesia?

Ninguém conhecido de novo. Porra, onde estão meus amigos às 14h30 de um sábado de jogo do Santa? Tomei uma cerva e vi a galera passando. Vou me embora é para o Arruda, pensei. E obedeci a mim mesmo. Encontrei com Esequias, sofri para comprar meu ingresso de arquibancada (a diretoria vai ter que mexer naquele vespeiro com urgência, já que os cambistas estão mandando e desmandando), e finalmente cheguei ao Bar de Abílio.

Voltando às minhas metafísicas dos costumes clubísticos. Se você chega uma hora antes do jogo e vai ao bar de Abílio, dentro da sede e não encontra um amigo, ou você é insuportável ou é dente-de-leite da torcida do Santa. Ou é um seminarista. Ou coroinha da Igreja. Ou candidato a pastor.

Estava lá Esequias, claro, com aquela conversinha mansa dele. Como ele é colecionador de coisas do Santa Cruz, levei um punhado de ingressos que venho guardando. Ele arregalou os olhos e ficou apreciando cada um, como se fossem figurinhas de um álbum da vida inteira. Bebemos nossa cerva gelada. É uma coisa da Idade Média, proibir uma reles e simplória cerveja num estádio de futebol. Os idiotas que fazem leis, neste país, são mesquinhos. Jogo pragas neles todos os dias.

Já na entrada, encontrei Pablo, da Planalto Coral. Ele e uma amiga. Dos três, o menos cabeludo era eu.

A moça foi revistada por duas policiais militares. Não foi uma revista, aquilo. Foi um baculejo que quase alcançou as entranhas. Revistaram a bolsa da moça ítem por ítem. Eu e Pablo passamos rapidinho e ficamos vendo a cena. Era tão absurdo, que teve hora que virou luta de classe. Será que a revista numa moça branca com cabelo liso e aloirado seria a mesma de uma mulher negra, de cabelos crespos?

Mas entramos. E toda vez que entro naquelas arquibancadas, fico imediatamente três graus mais feliz. Celsius ou Fahrenheit, não importa. Os rostos, as figuras, as conversas, a paixão incansável por um time obstinado, teimoso, que não se dobra. Ou seja – a torcida do Santa é a metáfora perfeita do clube.

O fato é que veio o gol e a vitória e os três pontos.

E se Grafite vem mesmo, para resolver o drama do gol, saiam da frente – a gente vai soltar fogo pelas ventas.

**

Ps. É preciso aplaudir de pé os senhores Inácio França e Laércio Portela pelo novo site do clube (www.santacruzpe.com.br). Está bonito pacas, dinâmico, articulado com as redes sociais etc. Se forem olhar o site agora, já tem a entrevista com o treinador após o jogo, fotos da partida e  os melhores lances (filmagens da TV Coral). É de dar gosto. 

Não negociem nossa alma!

Amigos corais, não sei quem negocia (ou negociou) os jogos do Santa Cruz com a Arena Pernambuco. Não sei quem é consultado. Não sei se o tal “Conselho Deliberativo” delibera alguma coisa. Não sei quanto entra (ou entrou) de dinheiro a cada jogo – e para onde vai (ou foi)  este dinheiro. Não sei de nada sobre essa estranha forma de tratar nossa casa, que é o Arrudão, um dos maiores estádios particulares do mundo.

O que está acontecendo, amigos, é que estão negociando nossa alma.

Quando saio de casa, para ir ao Arruda, saio rindo. Sou tomado de uma alegria particular, só minha, como o sujeito que recebe uma declaração de amor da mulher que ama, antes de sair de casa. Sei que vou encontrar a minha torcida. O meu povo. A massa coral, tão múltipla e indecifrável, quanto bela.

Tomo uma latinha de cerveja aqui em dona Nita, na frente do prédio, vou andando até o Parque 13 de Maio, pego um ônibus na Cruz-Cabugá – que já vem lotado de corais -, e em dez, quinze minutos, estou na porta do Arruda.

No entorno, barracas de cerveja, espetinho esfumaçado, macaxeira com charque, latão, latinha, promoção, aqueles sandubas misteriosos que o sujeito só come na beira do Arruda, ônibus passando, carro chegando, bandeiras, bandeirolas, casas com gente na calçada, tomando umas, escutando “Santa Cruz/Santa Cruz/Junta mais essa vitória…”

Ouso dizer que a Zona Norte do Recife, uma das mais povoadas da cidade, muda todo o seu cotidiano. Os morros descem. A geografia se modifica. Uma nuvem de paixão e poesia ronda e arranca as pessoas de casa.  É uma procissão de apaixonados. O Arruda, por sinal, pode ser visto de vários bairros, de muito longe.

Encontro com os amigos, biritas, enfrento a complicada entrada no estádio. Vou por debaixo das arquibancadas, aquele corredor que lembra um “túnel da torcida”, que vai mesmo entrar em campo, até que chego às arquibancadas e um portal se abre. Está lá, o graminha verde coral, o cheiro da torcida, a nossa casa. As figuras que conhecemos, mesmo sem saber o nome direito. A certeza de que, naquele lugar, muitas glórias aconteceram, muitos craques passaram, gerações se abraçaram, riram, choraram, se emocionaram, cantaram. Ali, nossa felicidade se multiplica, e nossa dor é amparada.

Agora, temos esta novidade, esta petulância – os atravessadores da nossa alma.

Somos obrigados a deixar nossa casa para assistir jogos numa “Arena” asséptica, fria, distante, com jeito de primeiro mundo, fruto de uma soberba do poder. Um estádio distante de tudo, construído para as elites, que sonham com os 90 minutos numa cadeira confortável. Um estádio que provoca, no torcedor coral, um sentimento trágico – ele sai de casa já irritado, chega irritado, assiste a um jogo deslocado (parece que está na casa de um primo rico e boçal), e volta pra casa ainda mais irritado. Mesmo que o time vença, o sujeito chega em casa puto, dizendo que não vai mais.

Falta tudo no entorno da tal “Arena”. O que seria uma “Cidade da Copa” é um descampado, incapaz de oferecer um reles boteco, um fiteiro, um muquifo, para o sujeito escorar o cotovelo e pedir uma cerveja, uma moela, uma cabidela. Um estádio para quem tem carro. Para quem tem dinheiro. Para quem tem paciência vendendo e sobrando. Para quem é corno manso.

Fui uma vez, no jogo contra  a Luverdense, e prometi nunca mais voltar.

Depois da primeira vitória contra o Náutico, me animei para ir, botei meu nome na Van que saía do Poço, mas aos poucos fui pensando melhor:

“O que eu vou fazer naquele fim de mundo, se temos a nossa casa, que é o Arruda?’

Arranjei uma desculpa fajuta e não fui. E não vou nunca mais.

A decisão é simples. Quero que qualquer dirigente do Santa Cruz, em qualquer tempo, qualquer gestão, seja qual for seu partido, ideologia, classe social, saiba que a nossa alma está no Estádio do Arruda, e com isso não se negocia.

Dizem que já “venderam” cinco jogos da Serie B deste ano para a Arena. Isso, para mim, é um crime contra o clube e sua imensa e apaixonada torcida. Precisamos juntar nossas forças para reverter isso o mais rápido possível.

No último domingo, escutei o jogo pelo rádio. A única coisa que eu pensava era como estaria o Arruda, no mesmo horário. Todos sabemos como estaria o Arruda. Estaria cheio. Estaria em festa.

Minto – pensava em outra coisa – na grande sacanagem que é botar a massa coral dentro daquela Arena gelada e sem alma.

Repito – não negociem a nossa alma.

Quero o meu Arruda de volta. Arena nunca mais.

É hora de voltar para casa

“Nunca fui na Arena, não vou, não irei. Nem de graça. Não vou, não quero saber como se faz pra ir e tenho raiva de quem já foi. Quero que a Arena se lasque”.

É o que vive repetindo meu cunhado. Sempre com ênfase, sempre taxativamente.

Pensei que no jogo em que o Santinha poderia entrar no G4, ele cederia. Não resistiria aos encantos da recuperação sob os cuidados de Oliveira Canindé. Dois dias antes, com o ingressos já comprados, quis saber se o irmão de minha mulher já tinha mudado de ideia. A resposta: “Quero bem ao cunhado, mas não vou não. Não perdi nada naquele fim de mundo. Comprei o pêi-pé-viu do Sportv só para ver os jogos do Santa naquela desgraça”.

Admiro a coerência, mas não dei a mínima. Ele está antecipando o velho ranzinza que, certamente, será. Foi o que pensei, afinal que mal faz o cara experimentar, abrir a alma para o novo? Nem que seja para provar suas próprias hipóteses.

A partida acabou e eu já tinha mudado de ideia. Eu estava errado. E ele certo. Mais do que certo. Certíssimo, aliás.

A Arena Pernambuco é um erro grotesco. Não o estádio, mas sua localização estapafúrdia, seu entorno e o grave problema de mobilidade e trânsito que sua construção criou. Mas um, como se a Região Metropolitana do Recife já não os tivesse aos montes.

Os jornalistas esportivos e os marqueteiros do governo (e da empresa parceira, a Odebrecht) vivem repetindo um mantra: “a Arena proporciona ao torcedor uma nova e moderna experiência para assistir a um jogo de futebol”. Com poucas variações, é mais ou menos essa a frase. Não há dúvidas disso.

Antes da Arena, ninguém precisava consultar mapa, GPS e sair perguntando para descobrir o melhor caminho para chegar em um estádio de futebol. Realmente uma experiência novíssima.

Antes da Arena, ninguém pagava dez contos por um saco de pipocas de microondas.

Antes da Arena, o elemento podia chegar ao Arruda, por exemplo, usando não sei quantas linhas de ônibus, táxi, bicicleta ou pedir para a mulher deixar por perto, quando fosse para a casa da mãe. Conta-se nos dedos as linhas de ônibus que levam pra lá. De táxi, nem pensar, a não ser que o torcedor cague dinheiro. De bicicleta, só se o ciclista for do time olímpico. E mesmo que sua sogra more em Paudalho, duvido que sua mulher vá topar o engarrafamento na BR só para facilitar sua vida.

A mais inovadora das novas experiências fica para depois do jogo. Sair de lá é pior do que chegar. Muito pior. Bota pior nisso.

Antes da Arena, o sujeito pagaria cinco ou dez contos para o guardador de carro que já conhece há anos, acaba o jogo e vai embora. Se for no Arruda, enfrenta um engarrafamento tamanho M ali pelo Rosarinho ou em Campo Grande, caso tenha de passar por esses lugares. Se morar muito longe, tipo Piedade ou Rio Doce, em quarenta minutos está em casa.

Na Arena, quarenta minutos depois você permanece dentro do estacionamento, sem poder ir para lugar nenhum, a não ser que tenha desistido da partida 10 minutos antes do fim. Se foi de ônibus, você estará dentro do ônibus, parado, num calor da pleura,  sem ir a canto nenhum.

Sábado foi assim: quase uma hora e meia depois da partida, permanecíamos no estacionamento, cujo preço é três vezes maior do que aquele cobrado pelos honrados guardadores do entorno do Arruda, ou da Ilha, ou do extinto Aflitos. E olhe que foram 34 mil torcedores, metade da multidão que enche o Arruda quando é pra valer.

No final das contas, saí de casa às 13h30min. Voltei às 21h. E isso tudo para ver Oliveira Canindé errar no atacado em suas substituições, para ver Tiago Costa se esconder do jogo, para ver Léo Gamalho no mundo da lua, para ver Wescley não conseguir se desmarcar, para ver quatro gols perdidos embaixo da barra, para ver os potiguares descerem o sarrafo, para ver o juiz fingir que o jogo não foi violento.

Enfim, para ver o time acovardar-se e ter medo de ser feliz.

Pelo menos a derrota serviu para silenciar a tabacudice de que “a Arena dá sorte pro Santa”. Não dá não, nem para quem construiu ou mandou construir.

Por tudo isso, é hora de voltar para o Arruda. Esqueçamos a Arena. De preferência, para sempre. Porque toda viagem, por melhor que seja, enche o saco e dá vontade de voltar para casa.

ArenaEngarrafada
Estacionamento da Arena Permambuco, às 19h15, quase uma hora depois do fim da partida Santa Cruz x América-RN

Tijolaço pode?

Ainda não completou um mês a morte do rubro-negro atingido por uma privada jogada do alto do estádio do Arruda. Pois bem, 22 dias depois do assassinato do rapaz na rua das Moças, um paralelepípedo tamanho GG voou das arquibancadas de outro estádio pernambucano, estilhaçou o vidro traseiro do carro do quarto árbitro de uma partida da série A, amassou o capô e foi parar no banco de trás.

Se o árbitro da partida e os bandeirinhas estivessem lá – pois nesse carro que eles foram do hotel para o estádio – alguém tinha passado dessa para melhor.

A coincidência das ações e do contexto – objetos pesados jogados do alto de estádios, minutos depois de partidas de futebol realizadas na mesma cidade – seria o bastante para que o fato merecesse bastante destaque e repercussão.

Nada disso. Quem usou os microfones para berrar que o Santa Cruz tinha de ser punido, calado ficou. As autoridades de segurança que apontaram o clube como culpado na primeira entrevista coletiva, não apareceram, não procuraram responsabilizar ninguém. Nenhum chargista se meteu a engraçadinho. Nenhum fotógrafo ou cinegrafista procurou outro ângulo para fotografar o carro (esperamos 48 horas por um foto melhor do que essa porcaria que ilustra a postagem), não apareceu um investigador para tentar adivinhar de onde foi jogado o pedregulho.

Na rádio, um comentarista – ou vários deles – disse com razão que não dá para comparar uma morte com um vidro quebrado. Não, não dá. Isso qualquer um pode compreender. O que é absolutamente incompreensível é que ninguém relacione um fato com outro. Não se trata de relacionar alhos com bugalhos.

Sinceramente, não acreditamos aqui no blog que a mídia, o ministério público e a polícia estejam de proteção com o Sport. Não é isso. Não é simples assim, apesar do clube se beneficiar com o silêncio.

É provável que o governo estadual não queira barulho com isso a tão poucos dias da Copa do Mundo. Compreensível, mas não é a coisa mais sensata a fazer: novamente “estão esperando morrer alguém” para usar o velho clichê. Quando a “merda virar boné” (agora este precário escriba recorre a um dito popular), como já virou há 22 dias, talvez já não baste botar a culpa no clube e ponto final, como fizeram na manhã do sábado pós-privada.

Já o silêncio dos profissionais da mídia, este eu não entendo. Será que consideram normal um tijolo voar da arquibancada, do mesmo jeito que não estavam nem aí quando tudo quanto é coisa era jogada das gerais do Arruda antes de 2 de maio? Marcaria um xis nesse resposta, caso fosse uma questão de múltipla escolha.

Ou será que precisam ser mobilizados por uma tragédia óbvia para deixar o estado de acomodação e a preguiça? Xis também.

É provável que raciocinem desse jeito: privada é notícia, tijolo acontece todo dias, tijolo pode”. E tome xis.

Não conseguem entender nada vezes nada da equação violência+futebol? Todas as respostas são verdadeiras.

Não sou hipócrita: torço para que o Sport seja punido, que se lasque, perca mandos de campos, jogue para ninguém. Mas sei que isso não vai resolver nada.

É o clube que paga as fortunas exigidas pelos jogadores, entrega as placas do seu estádio para a TV comercializar, paga as taxas que a CBF exige a cada partida, expõe sua marca e sua imagem, quase sempre é roubado pelos seus próprios cartolas. O clube está na ponta da corda que rompe quando os Três Poderes da República, a emissora da TV, os patrocinadores do campeonato, FPF e a CBF  – nenhum deles dependem dos tostões que entram pelas bilheterias – fingem não ter nada a ver com isso.