Eu não lembro se já havia visto aquele rapaz em algum jogo. Acho que não, pois nunca fico naquele lugar.
Vestido com o manto sagrado, ele estava bem na minha frente, em pé, encostado na mureta.
Mal bateram o centro, o nobre tricolor coral santacruzense das bandas do Arruda, balançou a cabeça de forma negativa e se virou pra trás com cara abusada, olhando para um rapaz que estava sentado praticamente na minha frente.
O jogo seguiu.
Na primeira bola que Grafite perdeu, Cara Abusada se virou de novo, olhou para o amigo, abriu os braços e falou:
— Num tou dizendo!
Essa frase foi a senha que fez com que eu percebesse que Cara Abusada faz parte da turma que elegeu nosso atacante para crucificar.
Allan Vieira fazendo suas lambanças, mas Cara não dizia nada. Artur jogando um futebol insosso, mas Cara não reclamava.
A função de Cara Abusada era de vigiar Grafite. O objetivo era de meter o pau no negão.
Teve um lance que foi cômico. Bola no meio campo, algum dos nossos mete um tijolo para Grafite, ele não consegue dominar e Cara Abusada dá uma dedada em direção ao nosso campo de ataque.
Ao meu lado, um gordinho gente boa, que se tornou meu amigo, comenta:
— Grafite hoje faz gol!
Eu respondo:
— E Keno, também!
Não sei por que, mas desde aquele jogo contra o Ceará, o primeiro embate aqui no Arruda, eu virei torcedor de Keno. Talvez seja a influência de Milton Jr. Milton sempre fala bem do futebol de Keno. Com a sua voz mansa, não cansa de repetir, “rapaz.., eu gosto do futebol de Keno”.
Pois bem, o jogo seguia.
Levamos um gol. Cara Abusada ficou mais mal humorado ainda. Pelo visto, a culpa do gol que levamos foi de Grafite.
Lembro de dois lances do nosso camisa 23. Na entrada da área, ele deu um drible no zagueiro e foi derrubado. Falta e o adversário levou amarelo. Cara não esboçou nenhuma reação. Parado estava na mureta, parado ficou.
Grafite mete uma bola de calcanhar para Keno. Um lance lindo, merecedor de aplausos. O abusado torcedor ficou estático.
Mas Grafite perdeu uma bola. Cara xingou. Grafite estava impedido. Cara reclamou.. Grafite cabeceou errado. Cara Abusada repetiu seu gesto: se virou, olhou para o amigo, balançou a cabeça negativamente, abriu os braços e repetiu:
— Num tou dizendo.
Foi quando Keno escreveu seu nome. Saiu driblando tudo que via pela frente e fez um golaço. Fomos ao delírio. Meu cunhado Flávio, sem óculos e sofrendo por causa da miopia, gritava:
— que gol do caralho!
O meu amigo gordinho, quase derruba um senhor. Um doidão de barba ruiva dava murro no peito e gritava pro estádio ouvir:
— é Santa Cruz, porra! Aqui é Santa Cruz!
Até Cara Abusada, deixou o abuso de lado, e comemorou junto com seu amigo.
Fomos para o intervalo. Eu, Flávio e o Gordinho tínhamos a mesma opinião: “dá para ganhar”.
Cara Abusada, que a esta altura bebia sua cerveja, estava sentado exatamente na minha frente, conversando com o amigo dele. Ouvi quando ele disse:
— Tou dizendo a tu, Grafite só joga com o nome!
Ficamos por ali. Cara Abusada também.
O time voltou para o segundo tempo. Cara continuou sentando bem na minha frente. A bola rolou e ele já balançou a cabeça. Por ele, era para Milton Mendes ter botado o General no lugar de Grafite.
— Puta que pariu! – eu pensei.
Mas nosso esquadrão encurralou o Bahia Axé Clube. Pressão total. Keno infernizava a defesa deles. O jogo era nosso. Bastaram 12 minutos para virarmos. Artur passa para João Paulo, que passa para Grafite, que gira e deixa o goleiro inimigo na saudade e, com categoria, quase sem ângulo, faz um belo gol.
Uma espécie de êxtase tomou conta de nós. Ficamos loucos. O orgulho, a paixão e o amor pelo Santa Cruz transbordavam pelos nossos poros.
Aproveitei a loucura daquele momento e gritei cuspindo no ouvido de Cara Abusada:
— É Grafite, poooorrra! É Gra-fi-te!
O jogo acabou. Não ganhamos. Mas saí do estádio com a sensação que o time de guerreiros voltou. E que temos plenas condições de vencer domingo.
Pena que não poderei ir para Salvador!