É o sistema nervoso

A quem eu perguntei, a resenha foi parecida com a minha. Robson Sena foi dormir e só ligou o rádio depois das seis horas. Samarone teve falta de ar e taquicardia.

Inácio foi dar uma trepada pra relaxar e esquecer o segundo tempo.

Só sei que meu lombo ainda está dolorido. Parece mais que levei uma pisa.

Mal acordei no domingo e comecei a sentir os sintomas.

Uma sensação de fraqueza. A barriga cheia de gases. Até chicotinho eu tive.

A superstição me mandou vestir a mesma camisa e ir para casa do meu pai. Partida  decisiva pelo rádio tem que ser na moradia de Seu Geraldo. Sempre deu sorte.

O coroa tem 77 anos de estrada e já viu de tudo nesse mundo tricolor coral das bandas do Arruda. Acho que é por isso que ele se mantem calmo. Meia hora antes, ele liga o rádio e começa a cochilar na cadeira de balanço. Parece que nada está acontecendo.

Já eu, não passo nem perto do Sharp.

Almoço, tomo uma cerveja, ligo a televisão e deito no sofá. Fico forçando um sono para ver se desapareço e não escuto a agonia da narração.

Adormeci e acordei com a gritaria na rua.

Gooooooooolllllll, o Sharp berrava no terraço. A mãe gritando “gol do Santa” e a pequena Sofia me abraçando.

Daí pra frente, o corpo foi dando sinais de nervosismo. Fiquei prostrado no sofá, pois se levantasse podia dar azar. Foi surgindo uma dor de cabeça. Pensei em ligar pro Samu. Estava certo que um acidente vascular cerebral tomava conta de mim.

“Mãe, eu acho que estou tendo um derrame”.

“É nada, menino. Isso é o sistema nervoso. Vou fazer um copo de água com açúcar”.

“Eu prefiro uma dose de uísque”.

“Primeiro a água com açúcar. Depois o uísque”.

Tomei a garapa. Em seguida o uísque.

Aquele primeiro tempo não acabava. Bateu um soluço infeliz.

Meu pai se levanta, passa por mim e diz que o time recuou muito. Sinto a barriga embrulhar. Corri pro banheiro. Um jato de água e fezes saiu queimando tudo.

Fim do primeiro tempo. Peguei as meninas, levei minha mãe para igreja e me mandei pra casa. Havia combinado com Inácio de irmos juntos para Galeria do Ritmo, assim que o jogo acabasse.

Cheguei em casa, era umas quinze pras seis. Pergunto a primeira-dama quanto está o jogo.

“Oxi. Nem o rádio liguei. Tou toda me tremendo. Tá quanto?”

“A gente estava vencendo de um a zero. Mas eu vim escutando música.”

De repente um grito na rua: É Santa Cruz nessa porra.

Abracei a família e nos mandamos pro samba.

A Raça é ser Santa Cruz

Ela vem de todos os lados.

Dos Altos. Dos baixios. Dos arredores. De longe.

Desce dos Córregos. Sai dos prédios. Empunha a bandeira. Veste a camisa.  Atravessa esquinas. Cruza estradas. Corre. Anda. Pula. Balança.

A Raça está ali.

Em cima. Embaixo. Atrás. No meio. No aperto da multidão. No riso inocente da criança. Em pé. Sentada. De frente.

Está na fé. Nos dedos cruzados. Nas mãos levantadas para os céus. Nos olhos fechados. Na promessa.

Tá No medo. Nas unhas. Na fumaça do cigarro. Na agonia. Na ansiedade dos que acreditam.

Tá no batuque do coração. No som que circula. Na energia que contamina.

Nas lembranças. Na esperança.

Nos que estão por perto. Nos que estão à quilometros.

A Raça ataca. Defende. Dribla.

Ela está no passe. No toque. No lançamento. No gingado do atacante. No pique. Na cara feia do zagueiro. No voo. No grito. No aquecimento. Na dor. No arremesso. Na queda.

A Raça é o carrinho que destrói. O empurrão de corpo. O bico da chuteira.

É o cruzamento na área. O chutão. O erro. O acerto.

O impedimento. A falta cometida.

Está no tiro certeiro. Na bola estufada na rede. Na explosão do gol. No sangue que escorre pelas veias. Na comemoração.

A Raça vem em lágrimas. Soluça de alegria. Chora. Abre o sorriso. Grita. Festeja. Canta. Aplaude. Abraça. Beija. Enlouquece. Transborda.

No balé das camisas que voam no ar, no sobe e desce do bandeirão, no tremor da arquibancada, está a Raça.

A nossa Raça não tem peso. Não tem tamanho. Não é rica. Não é pobre.

É nua. Anda descalça. Usa camisa. Veste saia. Calça tênis. Sandália. Tamanco.

A Raça tem cor.

É Preta-branca-vermelha.

A Raça, a nossa, não se pede. Não se dá. Não se compra.

Nossa Raça brota.

A nossa Raça é ser Santa Cruz.