De Colônia, Alemanha. Pois é, amigos. Depois de dez anos de angústias e retomadas, parece que voltamos à estaca zero. Estava nesta última sexta no aeroporto de Londres aguardando meu voo para Alemanha, numa manhã cinzenta e azeda. Sentei para tomar um café e comecei a pensar na vida. Voo atrasado, estresse insuportável no trabalho, sérios problemas pessoais e duas derrotas humilhantes pra coisa (vou ignorar o manual de redação do blog e dar o nome aos bois). Como dizia Shakespeare, quando os problemas vêm, eles não vem desacompanhados, mas em batalhões. O sujeito tenta peitar a vida de cabeça erguida e acaba achincalhado pelas mazelas do dia a dia. Nessas horas, vem à cabeça o aterrorizante problema filosófico de Camus, será que vale a pena viver?
Fomos humilhados e ofendidos, não só no gramado mas fora dele também. Tudo começou com uma notinha grotesca publicada no site oficial da coisa no dia 6 de março. Com um português macarrônico, pedante e ambíguo, típico da nossa elite de bacharéis, a coisa publica uma nota oficial em que acusa a Federação Pernambucana de Futebol de conspirar para atingir o “equilíbrio das forças locais”, um bendito de um eufemismo! Li aquilo indignado – logo a coisa, acusando a FPF de trambicagem! Justo eles, dos quais um conhecido ex-presidente já afirmou ter “empurrado” um jogador pra seleção. “Onde estão as provas? E ainda saíram ilesos?”, pensei comigo mesmo. Numa reviravolta mirabolante, os próprios donos do poder se passavam por vítimas inocentes. Perdoem-me o trocadilho, mas alguma coisa estava errada nesta história. Eu cresci ouvindo ano após ano os presidentes da coisa arrotarem uma superioridade inquestionável, uma espécie de privilégio que por vezes se confunde com um direito natural. Nunca vi um dirigente da coisa aceitar uma derrota sequer. Leiam os jornais ou ouçam as entrevistas dos três últimos anos e vocês verão que todas as vezes que ganhamos deles, nossa vitória foi atribuída a erros da arbitragem, no mínimo! Neste mesmo ano, num ato de soberba inigualável, a coisa cogitou retirar a estrela que remete a sua conquista da segunda divisão, pois não acha digno celebrar uma façanha tão irrisória.
Esse complexo de superioridade foi incrustado na cabeça do povo lentamente e, com o passar dos anos, parece que pegou. Penso nos meus amigos rubro-negros e alvirrubros, e mesmo nos meus professores no colégio, e lembro que o torcedor tricolor era visto como um pária, uma figura grotesca cuja existência escassa na zona sul do Recife se devia ao único fato de que ele estava ali para servir os outros. Era o famoso “servente” ou “serviçal”, a quem se reservara o infame “elevador de serviço”, onde, pasmem, também se carregam o lixo e os cachorros. “Tricolor é time de porteiro”, dizia um amigo meu que até hoje chamamos de cabeção. Na escola, eu engolia a seco o fato de ser tricolor. Na minha turma, éramos gatos pingados. Acho que éramos eu e o Paulo, que tinha um defeito no pé e andava arrastando a perna esquerda. Imagino que muitos se recusavam a se declarar tricolores por medo ou covardia. Viviam na clandestinidade ou fingiam torcer pros times do sul. Quando o Santinha perdia, eu e o Paulo desaparecíamos por três dias, fingíamos uma dor de barriga ou um resfriado inusitado. Nos corredores do Colégio Boa Viagem, celebrávamos nossas vitórias às furtivas, como dois maçons. Éramos humilhados até pelas meninas, que olhavam pra mim e diziam: “Ô, Pedro, tu não tem vergonha de ser tricolor, não é?”, como se eu estivesse andando nu pela sala. Pensava comigo mesmo que teria de mudar de time pra poder comer a Luíza, que eu amava loucamente lá do fundo. Ela nunca soubera! Ela nunca soubera!
Quantas vezes não vi os torcedores da barbie e da coisa assumirem uma agressividade proto-nazista? Lembro do triste dia em que eu e meu irmão Rodrigo ouvimos todo estádio dos Aflitos em uníssono imitar o guincho de um macaco a fim de humilhar o nosso goleiro Nilson. Lembro do meu irmão, com os olhos marejados, sair do estádio indignado para escrever um artigo sobre o ocorrido, acho que ele queria ir à polícia denunciar os alvirrubros. Mais humilhante foi descobrir que no dia seguinte, a imprensa pernambucana não daria um pio sequer e tudo passaria despercebido. Por ironia do destino, Nilson seria depois contratado pelo próprio time que esculachou sua dignidade humana. Lembro na época que me deu vontade de encontrá-lo e cuspir no seu rosto. Nilson me fez perder a fé no homem.
Logo após nossa primeira derrota pra coisa por três a zero, leio que o tal do Ewerton Páscoa afirmou estar “entalado” conosco, e que só mudará de pensamento caso nos elimine da competição, como se fôssemos um problema vital. Alguns dias antes, durante o intervalo do clássico, após um repórter questionar o Neto Baiano se ele teria assumido o papel de garçom no jogo, ele abre uma risada sarcástica e diz que ainda faltam 45 minutos, como se aquilo fosse uma brincadeira, uma pelada no Pina. Se eu fosse o Vica, teria dito ao Éverton Senna: “você só volta ao vestiário se houver sangue daquele sujeito na sua camisa”. No entanto, olho abismado o semblante de Vica durante o jogo, parecendo o Chamberlain, aquele maldito premier britânico que entregou a Europa de bandeja ao Hitler. Fechei meus olhos e pensei que novamente seríamos escorraçados como baratas, depois de três anos de conquistas e vitórias.
Caro leitor, devo confessar – eu odeio a barbie e a coisa. Não odeio alvirrubros e rubro-negros, pois o indivíduo, por um milagre divino, sempre escapa das amarras do cafajestismo quando o bom-senso bate às portas. Porém, odeio com todo o coração ambas as entidades e tudo o que representam. A barbie e a coisa se tornaram pra mim, nesse “bildungsroman” da vida, como dizem os alemães, o símbolo de toda imundície que impera no Brasil. Li aquela prepotente nota oficial rubro-negra com tanto asco que no átimo me recordei do principal motivo pelo qual abandonei o Brasil, já cansado desse império de iniquidade. Certa vez, lembro de ter entrado no prédio onde fica a famosa firma de advogados do presidente da coisa. Fui visitar meu irmão, que trabalha no mesmo edifício. De relance, vislumbrei o escritório deles e ouvi um dos advogados atrás de mim sussurrar para o amigo que eles ocupavam uma boa parte do prédio. Recordei o prefácio que Camus escreveu ao seu primeiro livro, afirmando que há certos níveis de riqueza que ele não conceberia possuir. Naquele momento, pensei a mesma coisa. Minha conclusão: o Brasil não é pra mim; fui-me embora. Já faz sete anos.
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Apesar dessas notas melancólicas, posso dizer que a vida nos oferece tristezas e alegrias, e estas surgem nos momentos mais inusitados, quase inintencionais, como dizia Machado. Conheci esses dois sujeitos há um ano e meio, nos sentamos num café do Paço Alfândega e tramamos uma forma de cantar a música dos sujeitos que perambulam pelos elevadores de serviço, dos unsung heroes, os heróis desconhecidos, como dizem os ingleses. Por dez anos, esses dois tem escrito incessantemente sobre esses “fantasmas” do Recife sem pedir nada em troca. Como eu já afirmara anteriormente, existem certas nobrezas que são inalcançáveis. Há uma doce alegria quando eu volto ao Recife e reencontro o Lourenço, o porteiro do prédio onde moram meus pais. Lourenço me trata como um filho e abre um sorriso paterno que me restaura o amor pelas coisas simples e humildes. Samarone e Inácio, que juntamente com Gerrá, estão lançando neste domingo o último tijolo da nossa catedral tricolora, me fizeram ter um grande orgulho de ser tricolor e olhar para o Recife e ter saudade.
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