Demagogia mata

Não recordo de outro dia em que o Recife acordou como no sábado, logo depois da morte do rubro-negro Paulo. As pessoas desta cidade, que já andam murchas, murcharam ainda mais. A vergonha era maior que o medo, a desorientação maior que a indignação ou a raiva.

Alguns disseram ser bizarro a pessoa morrer atingida por uma privada. Considerando onde e como o rapaz morreu, talvez sua morte tenha sido simbólica e não bizarra. Afinal a bacia sanitária que matou o rubro-negro Paulo poderia receber todas as políticas e ações tomadas em Pernambuco para conter a violência das torcidas organizadas. Eu escrevi em Pernambuco. Troco por Brasil.

Leis são aprovadas, medidas “urgentes” são tomadas, decisões judiciais são proferidas. O problema é que, quem aprova a lei, quem põe as operações em prática e quem assina a sentença não compreende absolutamente nada desse fenômeno social. Não compreende e não faz a mínima questão de entender.

Em 2009, a Assembleia Legislativa de Pernambuco aprovou a lei seca nos estádios. É para diminuir a violência nos estádios de futebol. Demagogia pura. A morte de Paulo, o ferimento de Lucas Lyra e os ônibus quebrados todos os domingos provam que essa lei fracassou, é inócua, não serve para nada. E quem a aprovou continua tomando uísque nos camarotes e nas tribunas em todas as partidas. A polícia não se mete com eles.

No mesmo ano, pouco antes da lei ser votada, um gênio da raça humana, o juiz Ailton de Souza, disse a seguinte besteira “o número de incidentes nas praças esportivas reduziu bastante com o fim das vendas de bebidas alcoólicas”. Ainda não li a opinião dele depois de tudo o que anda acontecendo por aqui.

Talvez as pequenas brigas entre sócios e as discussões entre um torcedor e outro tenham diminuído. Essas confusões localizadas, nem com muito pessimismo, poderiam ser caracterizadas como problema de segurança pública.

Algum desses deputados dirão: “Se não houvesse a lei, estaria pior”. Meu pai, debochado e cético, responderia: “Se minha mãe tivesse uma carreira de peitos, seria uma porca”. Os fatos demonstram apenas que a lei seca é inútil. Está claro que, o que move a violência nesses rapazes, não é a cerveja que o gasoseiro vendia. É outra coisa que nenhuma lei é capaz de impedir, só não sei o que é.

Não me arrogo a dizer que conheço as raízes desse fenômeno, mas não é difícil perceber que o problema é mais profundo, reflete-se no entorno do futebol é verdade, mas nasce nas comunidades da periferia, na vida vazia cheia de pequenas violências cotidianas. Às vezes me pego pensando que as velhas rivalidades entre garotos de ruas diferentes se transformaram nessa guerra. E que tudo desagua no futebol porque o futebol é, no Brasil e em boa parte do mundo ocidental, é válvula de escape, grande negócio, moda, mania, meio de vida, lazer.

Não, o Estado não precisa aguardar os teóricos para fazer alguma coisa. Não é isso. Só não dá mais para apostar em leis demagógicas e repressão, repressão e repressão. O Batalhão de Choque não tem a capacidade e não deveria ter os poderes para elaborar política pública para esse assunto.

Um magistrado pode ser tão demagogo quanto um deputado. O Tribunal de Justiça (sic) de Pernambuco proibiu os torcedores entrarem no estádio com camisas, faixas e símbolos de torcidas organizadas. Mais um investimento na pirotecnia e na inutilidade. Agora está mais difícil localizar quem é quem nas arquibancadas e nas gerais.

Se promotores, delegados e juízes sabem que organizações com CNPJ e advogados constituídos organizam quebra-quebras, arrastões, marcam brigas de ruas, armam tocaias para matar gente, porque nunca as investigaram para valer? Porque não apreendem os computadores em suas sedes? Porque nunca ouvimos falar de apreensões nas residências de seus dirigentes? Nem de escutas telefônicas ou ambientais aprovadas pela Justiça?

Provavelmente porque a Inferno Coral, a Torcida Jovem, a Fanáutico e seus iguais pelo Brasil afora não incomodam o privilégio dos donos do dinheiro. Por muito menos os movimentos sociais, que brigam por terra, por justiça social, por habitação e por direitos sofrem infiltração dos espiões dos serviços reservados, são criminalizados e sofrem tudo quanto é tipo de perseguição.

No dia em que uma torcida organizada lutar pelo fim do monopólio da Rede Globo nas transmissões de futebol , por transparência nas contas da federação ou por um processo democrático de escolha dos cartolas, aí sim, não vai sobrar pedra sobre pedra. No outro dia, vamos saber quem são os dirigentes das organizadas, quanto ganham, de onde vem o dinheiro, suas redes de ligações, o que eles comeram no jantar…

Enquanto esse dia não chega, tudo sobra nas costas da PM resolver na marra, na base do todos apanham e nada muda. O Ministério Público, a Polícia Civil, a Federal (sim, a PF, afinal torcidas de um estado são articuladas com as de outros times de outros estados, numa rede sem fim), os gestores de Segurança só se mexem “se provocados” ou se a merda virar boné, como agora.

Além do quê, é sempre fácil culpar os clubes.

Nos próximos dias, veremos vários senhores engravatados nos telejornais e nas páginas de opinião dos jornais. A mídia permanecerá histérica, mas só enquanto a morte de Paulo for notícia. Os porta-vozes das organizadas repetirão o porta-voz da PM e dirão que “a violência vem de elementos isolados e não a instituição”, mesmo que os elementos paguem mensalidades, viajem no mesmo ônibus, participem das festas etc.

Vai dar vontade de vomitar.

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