O drible

Para ajudar a relaxar nesta semana que só vai acabar daqui a 3 anos, uma sugestão de leitura do Blog do Santinha em transmissão conjunta com o Caótico.

A descrição do drible de corpo de Pelé no goleiro uruguaio Marzukiewicz que abre O drible, de Sérgio Rodrigues, tem tudo para ser citado exaustivamente sempre que literatura & futebol for tema de debates, oficinas, artigos, mesas redondas e coisas e tais.

Rodrigues acertou a mão e construiu uma abertura inesquecível para seu romance. Se Pelé foi responsável pelo lance mais imprevisível do futebol, jamais um gol perdido foi descrito com tamanha beleza. Ao menos nos parágrafos iniciais do livro, Sérgio Rodrigues esteve à altura de Edson Arantes do Nascimento.

Só um aperitivo: “Congelada, a imagem do velho videoteipe fica distorcida. Parece que o negro de camisa amarela e o branco todo de preto vão colidir, quem sabe se fundir, feixes luminosos tentando esquecer que um dia foram carne”.

A pegada segue firme ao longo de todo romance. Tabelando com Didi, Garrincha ou Vavá, Sérgio Rodrigues conta as idas e vindas de Neto para curar inúmeras feridas e aproximar-se do pai, um outrora famoso cronista esportivo amigo que fez fama e fortuna durante a ditadura militar.

Ao longo do romance, figuras reais como Nélson Rodrigues, seu irmão Mário Filho e Millôr Fernandes reencarnam para interagir com o protagonista Murilo Filho. As aparições dos monstros sagrados da crônica e do jornalismo ocorrem em flashes, coisa rápida o bastante para garantir verossimilhança e encantamento, sem risco que algum deles tome conta do livro. Fez bem o autor. Com gente desse porte, não se brinca.

Se o pai do protagonista bate-bola com Nélson Rodrigues, o personagem do livro de memórias cujos rascunhos ele entrega para o filho Neto revisar, um jogador quase sobrenatural chamado Peralvo, bate-bola com sua-majestade-o-rei-do-futebol.

O_DRIBLEA prosa leve de Rodrigues, que já foi capaz de garantir uma narrativa instigante em Elza, a garota, desta vez soma-se a um maior domínio técnico – bendita seja a experiência. Em nenhum momento, o leitor desgruda-se da trama.

Nada é precipitado, a cortina vai se abrindo aos poucos, num ritmo sedutor, de um jeito tal que dá gosto ter O drible na bolsa para, de vez em quando, abri-lo, ler quatro ou cinco páginas e, em seguida, guardá-lo com calma esperando o silêncio, o sossego e o momento para retomar a leitura.

A história dos desencontros dos Murilos, Filho e Neto, é narrada por uma terceira pessoa tão discreta, discretíssima aliás, que suavemente se revela tão falsa quanto a intenção de Pelé ao correr para receber a bola de Tostão diante da grande área uruguaia. Uma finta de corpo que deixa o leitor sem pernas, embasbacado, porém satisfeito de chegar ao final de um livro que marca com honra um gol de letra ao unir futebol e literatura, duas pontas da vida que andavam soltas.

O drible traz para a ficção a importância que o futebol tem para o Brasil contemporâneo. E, contraditoriamente, também carrega sua desimportância e pequenez diante da dor de menino que o adulto deveras sente.