Sábado coral

Amigos corais, imaginemos a cena ideal. É sábado, as chuvas deram uma pausinha, o dia está exageradamente belo. Você tem saúde, algum dinheiro no bolso, e, tirando os problemas normais da vida, você não está vivendo nenhum drama espetacular. Nenhuma tragédia faz parte deste dia. E às 16h30, o Santa Cruz joga, em pleno Arruda.

Acrescentemos um ovo de codorna ao seu caldinho de feijoada – você vive no Recife, ou próximo ao Recife. E pode ir ao jogo. E vai. E sorri, com uma certa vaidade, ao saber que o estádio do seu clube não é uma opulenta e desalmada Arena, a vinte ou trinta quilômetros de sua casa. Seu estádio é o Arruda, onde certamente seu pai ou seus irmãos ou parte dos seus amigos sorriu, sofreu, chorou, amou. Cada pedaço daquele colossso tem cheiro, memória, vida.

Seu estádio está encravado na Zona Norte do Recife, a mais bela da cidade, com seus morros e sua história, em plena Avenida Beberibe, não na Avenida Deus é Fiel (endereço da Arena Pernambuco).

Se você torce pelo Santa e não agradece por esta combinação de fatos ideais, me perdoe, meu amigo, mas você está sendo ingrato com a vida. E ingratidão cobra um preço enorme.

Como não sou chegado a ingratidão, compartilho meu sábado coral.

Saí de casa às 14h em ponto. Mal chego ao Parque 13 de Maio, passa um Avenida Norte/Macaxeira. A cobradora me dá o troco saboreando uma delicosa “quentinha”. O ônibus quase não para e rapidinho estamos na encruzilhada. Resolvo descer, para tomar alguma cerva com algum amigo, já que marquei com Esequias às 15h. Dou uma passeada, tem um trio de forró, aquela agitação, eu só ficaria se fosse a finada Sanfona Coral. Debreei.

Fiz o contorno, voltei. Gosto de caminhar, mas eu só pensava na gelada. Precisava tomar uma atitude. Passa um Dois Unidos/Prefeitura. Mal entrou no veículo, passam uns batedores a todo vapor, como se tivessem escoltando algo muito importante, um rei da Inglaterra, o Papa Francisco ou aquela mulher da propaganda da Itaipava, a Verão.

Era mais que isso – a escolta do ônibus coral, com os atletas e comissão técnica, patrimônio da torcida mais apaixonada do Brasil.

“Esse ônibus ainda é o velho. O novo vai chagar mais tarde, com Grafite dentro”, me disse o motorista, com um riso de satisfação.

Ele, por sinal, está mais bem informado que eu.

Quando o ônibus passou defronte ao bar Dragão, pedi para dar uma paradinha.

“Desce por aqui mesmo”, disse o motorista.

Desci pela frente. Quem disse que neste mundo não há cortesia?

Ninguém conhecido de novo. Porra, onde estão meus amigos às 14h30 de um sábado de jogo do Santa? Tomei uma cerva e vi a galera passando. Vou me embora é para o Arruda, pensei. E obedeci a mim mesmo. Encontrei com Esequias, sofri para comprar meu ingresso de arquibancada (a diretoria vai ter que mexer naquele vespeiro com urgência, já que os cambistas estão mandando e desmandando), e finalmente cheguei ao Bar de Abílio.

Voltando às minhas metafísicas dos costumes clubísticos. Se você chega uma hora antes do jogo e vai ao bar de Abílio, dentro da sede e não encontra um amigo, ou você é insuportável ou é dente-de-leite da torcida do Santa. Ou é um seminarista. Ou coroinha da Igreja. Ou candidato a pastor.

Estava lá Esequias, claro, com aquela conversinha mansa dele. Como ele é colecionador de coisas do Santa Cruz, levei um punhado de ingressos que venho guardando. Ele arregalou os olhos e ficou apreciando cada um, como se fossem figurinhas de um álbum da vida inteira. Bebemos nossa cerva gelada. É uma coisa da Idade Média, proibir uma reles e simplória cerveja num estádio de futebol. Os idiotas que fazem leis, neste país, são mesquinhos. Jogo pragas neles todos os dias.

Já na entrada, encontrei Pablo, da Planalto Coral. Ele e uma amiga. Dos três, o menos cabeludo era eu.

A moça foi revistada por duas policiais militares. Não foi uma revista, aquilo. Foi um baculejo que quase alcançou as entranhas. Revistaram a bolsa da moça ítem por ítem. Eu e Pablo passamos rapidinho e ficamos vendo a cena. Era tão absurdo, que teve hora que virou luta de classe. Será que a revista numa moça branca com cabelo liso e aloirado seria a mesma de uma mulher negra, de cabelos crespos?

Mas entramos. E toda vez que entro naquelas arquibancadas, fico imediatamente três graus mais feliz. Celsius ou Fahrenheit, não importa. Os rostos, as figuras, as conversas, a paixão incansável por um time obstinado, teimoso, que não se dobra. Ou seja – a torcida do Santa é a metáfora perfeita do clube.

O fato é que veio o gol e a vitória e os três pontos.

E se Grafite vem mesmo, para resolver o drama do gol, saiam da frente – a gente vai soltar fogo pelas ventas.

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Ps. É preciso aplaudir de pé os senhores Inácio França e Laércio Portela pelo novo site do clube (www.santacruzpe.com.br). Está bonito pacas, dinâmico, articulado com as redes sociais etc. Se forem olhar o site agora, já tem a entrevista com o treinador após o jogo, fotos da partida e  os melhores lances (filmagens da TV Coral). É de dar gosto.