A sarna somos nós

Nada de extraordinário me aconteceu no dia em que subimos. Preparei um arrumadinho, bebi poucas cervejas em companhia de uns poucos amigos e da família, a chegada ao estádio coincidiu com a do ônibus coral, enfim, nada que mereça um texto. Apenas os procedimentos de rotina para quem vai se estourar de emoção seguida da alegria comum a todos.

E mesmo se testemunhasse feitos curiosos ou apocalípticos,  provavelmente não os teria transformado em prosa. Como observador, não valho grandes coisas. Tudo pode acontecer nas minhas fuças que não estou nem aí. Para transformar pequenos incidentes em crônicas saborosas, Samarone faz isso mais e melhor. Para botar sacanagem no meio, Gerrá é o titular, com a camisa 10 e braçadeira de capitão.

O que eu sou mesmo é chato. Muito chato. Insuportável. Não deixo perco a chance de passar na cara de quem quer que seja, seja lá o que for.

E, desde os dias que antecederam a partida dos 60 mil contra o Betim, tenho percebido um fato incontestável: o Santa Cruz Futebol Clube está merecendo como nunca o apelido que lhe colocaram os bicolores na intenção de ofender. Somos a sarna.

Uma sarna irritante, insistente, de esfolar a pele. Uma sarna que tomou conta da cidade.

Primeiros fomos os próprios corais que espalharam uma energia que vou chamar de eletricidade emocional, um elemento que não se via, mas estava em todas as conversas, antecedendo sérias reuniões de negócios, aflorando nos encontros ocasionais no meio da rua: “E o Santa, sobe?”. Primeiro se perguntava isso para os tricolores, depois esse era o tema inicial de qualquer conversa, em qualquer situação.

O comichão estava em todo canto: o governador, articulando sua candidatura a presidente começava assim os cochichos sigilosos. Era isso que o gari, antes de pegar a vassoura e o balde, perguntava ao dono do fiteiro. Esse era o papo entre o cobrador e o motorista. Nas rádios. No salão de cabelereiro chic do Espinheiro. No boteco do Vasco. No posto de saúde. Na praia. Santa Cruz e sua torcida, o assunto da cidade.

Alvirrubros e rubro-negros se coçaram. De vontade de ir ao jogo. De inveja de uma nação que envergou, mas não quebrou. De admiração, como a testemunhar um soldado voltar do inferno da batalha repleto de cicatrizes, porém vivo e sabendo onde não botar o pé, como escreveu um colunista da revista Trivela.

Sem forçar muito a memória, conheço quatro alvirrubros que foram ao Arruda ver por dentro uma torcida de futebol. Pertinho de mim, nas sociais, estava Gustavo Krause, ex-governador, ex-prefeito e ex-não-sei-o-quê do clube de coração de todo ex-aristocrata.

No facebook, um rubro-negro escreveu em sua página:

Pode parecer ironia, mas não é não. Tô torcendo para o Santa Cruz subir. E não é por “pernambucanidade”, afinal sou baiano. É uma questão de justiça. O Santa fez a melhor campanha e é, de fato, maior que a Terceira Divisão. Por isso os tricolores têm minha solidariedade no domingo. Ah, não espero e nem cobro de volta que a galera do Santa torça pelo … (editado por desrespeitar o manual de redação do blog). Futebol é feito da rivalidade entre vizinhos…

Depois da partida, a coceira continuou, mais intensa inclusive.

Outro, em sua coluna “neutra e objetiva” num jornal, debatia-se para dourar a pílula da provocação e apontar um significado moral na direção oposta do óbvio:

Na hora em que dezenas de torcedores saem de casa carregando um “B” dourado e gigantesco nas mãos – com orgulho e sem constrangimento (…). No linguajar comum dos torcedores rivais, a definição para a cena é de que “isso é coisa de time pequeno”. Como dizer que não é? Os “bês” dourados e corais que foram vistos no Arruda no último domingo refletem sim um Santa Cruz moralmente encolhido.

A escabiose abre feridas, dói, enlouquece o sujeito a ponto dele não enxergar mais nada a meio palmo do nariz. Provavelmente, quando o escriba das palavras acima perceber que se trata exatamente do contrário, será tarde demais. A sarna terá tomado o corpo, a alma, tudo. Encontrei no Google fotos horríveis de gente atacada por essa doença.

Por mim, assumo de uma vez por todas o xingamento como um elogio: nós, tricolores, somos uma doença contagiosa, multiplicada pela miséria, que não mata e sequer aleija, mas que não deixa vítima esquecer dos seus sintomas um só instante.

A ofensa, nesse caso, expõe a pequenez de quem ofende na mesma medida em que revela a grandeza do ofendido.

Domingo tem multidão de novo. A epidemia, pelo jeito, vai continuar.