Amigos corais, abri os olhos hoje de manhã e pensei em pedir minha mulher para me beliscar. Terei sonhado muito? Foi delírio de minha parte?
Pois bem, vamos ao diário de um dia inesquecível, para mim e para a massa coral.
Primeiro o “esquente” no Sukito, boteco modesto cá no centro, defronte ao Parque 13 de maio. Uma cerva, uma dose de “serotonina”, como diz o amigo e filósofo Zeca (uma lapadinha de Pitucilina com limão) e um rango.
Às 14h em ponto, ônibus para o Arruda, já coalhado de torcedores. O portão 9 como estará hoje, meu Deus. Meu sofrimento é o portão 9, por onde entram os arquibancadinos.
Primeiro bom sinal – a avenida Beberibe estava bloqueada bem antes do Arruda, facilitando o fluxo da multidão. Dou alguns passos, e passa o Ônibus Coral. A torcida entrou em festa. Acenei com minha bandeira. Meu sonho é chegar a algum jogo dentro dele, vendo a massa acenar. Nessa hora, o jogador mais frio se sente um herói, se enche de brios. Após passar por uma multidão apaixonada, não precisava nem de preleção. Eu, se fosse o treinador, ficaria apontando os torcedores de todas as classes sociais e diria:
“Joguem por eles”.
Tentei ir ao bar de Abílio, onde estariam vários amigo, mas estava impraticável. Fiquei do lado de fora, tomando umas nas barracas de isopor.
O portão 9, eu só pensava no portão 9, aquela fila esculhambada pra cacete. Encontrei Júlio Vilanova, que outro dia chegou de viagem da China. Passou três semanas entre Xangai e outras cidades menores. Cidade menor na China é aquela que tem vinte milhões de habitantes. Ele chega com uma cadernetinha com a imagem de Mao Tsé-Tung.
Só mesmo um torcedor do Santa mesmo, ser capaz de comprar um caderno na China e levar para um amigo que gosta de tomar notas de tudo. E ainda ter a esperança de encontrá-lo, no meio de milhares de pessoas.
Guardei o caderno, tomamos umas e depois peguei o beco, rumo ao Portão 9. Eram 15h e calculei chegar ao ferrinho, junto ao escudo, lá pelas 17h.
Eis o choque existencial e psicológico. Barreiras policiais logo no início da rua. Nem me revistaram, o que achei uma covardia. Poderia ter levado uma ampolazinha de Teachers.
A fila andava rápido. Mais adiante, aquelas grades de ferro, que impedem o empurra-empurra.
Não entendi nada. Em dez minutos, creio, estava dentro do estádio. Meu lugar no ferrinho só cabia mesmo a mão. Botei ela e, aos poucos, fui me esgueirando.
A massa coral em festa. Dia lindo. Dia de Grafite. Dia de arrancarmos rumo à ponta da tabela, de pegar ar e se impor na competição como um grande clube que somos.
O jogo… Ora bolas, o jogo é o óbvio. Se eu for pago pelo Blog do Santinha para escrever sobre o jogo, serei demitido.
Um sujeito ao meu lado reclamava com Grafite.
“Está fora de forma”.
“Não é o mesmo”.
E eu já amolando minha língua para dar um troco.
O sujeito esperava que Grafite entrasse, saísse driblando todo mundo e fizesse quatro gols em dez minutos.
“Eu botava Luisinho”, dizia.
E eu esperando.
Lá pelas tantas, cruzamento na área e gol de quem?
“Graaaaffiiiiiiiiiiiiiiiteeeeeeeeeeeeeeeeee!”
O sujeito se vira e me abraça, às lágrimas. Um abraço de quem chegou de um exílio no Uruguai, de vinte anos.
“Eu sabia! Esse Grafite é um predestinado”, disse ele.
“Joga demais! Tem estrela!”
Essa memória do torcedor é algo que impressiona.
A vitória foi a coroação de um trabalho enorme de um monte de gente competente. Presidência+marketing+comunicação+torcida chegando junto.
Foi uma vitória dentro e fora das quatro linhas, coroada com o gol do nosso craque.
À saída, uma nova surpresa. TODOS os portões das arquibancadas estavam abertos. Não havia aquela centena de vendedores de cerveja logo de cara, facilitando o fluxo.
Como ninguém é de ferro, a PM insiste em deixar seus ônibus da Tropa de Choque estacionados justo ali, na rua, atrapalhando a multidão.
Mas registro uma vitória: não vi um cavalo, a tarde inteira. Nem spray de pimenta na cara da gente.
Passei em Abílio, vi os amigos, alguns assinaram seus nomes na minha bandeira, que , ao final do ano, vai para a coleção de Esequias Pierre.
Passei na sala de Imprensa, para ver se Inácio estava lá. Nada. Mas vi uma entrevista de Tininho, dizendo que até o bicho do jogo já tinha sido pago.
Só deu tempo de comprar mais uma cerva, pegar um ônibus e voltar para casa, com um sorriso na alma.
O Santa está passando por uma mudança que ainda não percebemos direito – é de mentalidade.
Os jornalistas, logo que o presidente Alírio Morais assumiu a presidência do Santa, começaram a apelidá-lo de “Delírio”, por causa de suas idéias pouco convencionais.
Recorro ao “Aurélio”:
“Delírio”: “1. Distúrbio mental caracterizado por idéias que contradizem a evidência e são inacessíveis a crítica; 2. Exaltação do espírito; desvairamento”.
Deixem que ele delire à vontade – e leve consigo uma equipe profissional azeitada e competente e toda uma nação apaixonada.
Não existe nada mais parecido com o Santa Cruz do que a exaltação do espírito, ao desvairamento.
Lembro agora de Chico Buarque, o poeta, que se refere a “estar doente de uma folia”.
É isso o que sinto.