Todos sem a nota

Estava em Brasília, a trabalho, quando recebi a notícia pelo email:

“Continuamos sendo orientados para não abrir o Todos Com a Nota para este jogo. A ordem é do Governo do Estado e os torcedores já estão sendo informados sobre isso. Não foi marcada nenhuma reunião e ninguém ligou para conversar com a gente sobre qualquer mudança, então, até o momento, não terá o TCN para o jogo de domingo”, afirmou o coordenador do projeto, Gustavo Aguiar.

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A explicação para o a punição ao Santa:

“O Santa Cruz descumpriu a lei estadual que obrigava os clubes da capital a mandarem  pelo menos dois jogos na Arena. O Consórcio Arena Pernambuco tentou realizar um acordo com o clube para que a partida da semifinal acontecesse no palco local da Copa do Mundo, mas não houve sucesso”.

(Folha de Pernambuco, 27.11.2013.)

Para que fique mais claro, a semifinal que o coordenador cita foi o jogo da volta contra o Luverdense.

Santa Cruz 2 X 1 Luverdense.

É interessante essa peleja do Governo Estadual querendo de todo jeito fazer o Santa Cruz jogar as partidas finais da Série C, lá em São Lourenço da Mata.

Por que tanta agonia?

Da nossa parte, não vejo sentido nenhum, nós tricolores corais santacruzenses das bandas do Arruda, termos passado o ano todo construindo nossa conquista no gramado do José do Rego Maciel, e agora, justamente no jogo final, na decisão do campeonato brasileiro, na despedida do nosso vitorioso ano de 2013, irmos festejar num salão de festas chique, que foi construído para atender aos interesses da Copa do Mundo.

A Arena da Copa não é nosso reduto.

Aquele estádio não tem nossa cara, não tem nosso cheiro, não tem nosso estilo.

Também não me convence a justificativa dada pelo Sr. Todos Com a Nota com relação a punição ao Santa Cruz, dizendo que é pelo fato do descumprimento da Lei.

Ora Sr. TCN, arrume outra desculpa, porque domingo, com nota ou sem nota, eu vou pro Arrudão.

Eu quero sempre ser campeão

Sempre achei uma tremenda besteira esse de negócio de se dizer que o importante é competir.

Certa vez, depois de uma derrota nos jogos escolares, descarreguei uma metralhadora de palavrões na cara do professor que veio amenizar nosso sofrimento, utilizando a tal frase.

Eu gosto mesmo é do sabor da conquista.

Sou daqueles que não menosprezam o triunfo.

Comemoro a vitória no dominó. Vibro com a bola colocada no cantinho da barra do jogo de botão. Dou volta olímpica, após ganhar o torneio de futebol society na confraternização da nossa pelada.

Quando entro na disputa, entro para chegar ao ápice. No topo do pódio.

Não me importo qual seja o título. Se é jogo, eu quero ser o vencedor. Quero gritar “é campeão”.

Até hoje não me conformo em ter sido vice-campeão da série B de 2005 e muito menos da série D em 2011. Não fosse a frouxura da turma da barbie e a morgação de Zé Teodoro e Sandro Barbosa, estaríamos hoje com dois títulos nacionais anotados na nossa história.

Para mim, a importância de ser campeão vai além de detalhes como estrelas, voltas olímpicas e troféus.

É muito mais do que isto.

O Santa Cruz campeão é o povo sorrindo à toa.

É a pequena Sofia que corre por dentro de casa e grita “ti-ticolor”. É Bruno que passa horas desenhando o Santa Cruz. É Mariá que recorta imagens do nosso escudo e cola na sua pasta e nos seus cadernos. É Heitor que vai para o treino de futsal vestido dos pés a cabeça com as nossas cores.

O Santa Cruz campeão é o motorista que forra o banco do ônibus com a toalha do Mais Querido. É Daniel que vai trabalhar vestindo uma camisa coral por baixo da farda. É Seu Luiz que abre uma cerveja e faz um brinde. É Gorete que estende a bandeira na janela de casa. É Naná que tira sua onda.

Seja qual for a vitória, seja qual for o campeonato, quando o Santinha triunfa, é toda uma massa que se orgulha, é todo um amor que se renova, é toda uma paixão que se fortalece.

Que venha a conquista do campeão brasileiro da série C.

Eu, Alessandra, Inácio, Geórgia, Samarone, Stênio, Delmes, Gileno, Raquel, Guila e tantos outros estaremos de braços abertos para receber o título.

O País de Caça-Rato

Por Xico Sá. Amigo torcedor, amigo secador, no país de Caça-Rato, símbolo da sobrevivência e herói do time do Santa Cruz, tudo é diferente da fantasia e da modernidade que tentam nos vender a cada instante, a cada clique, a cada moda. No país de Caça-Rato, o menino Paulo Henrique, 9, nada de braçada no esgoto do canal do Arruda, como na foto de Diego Nigro (JC Imagem), que assombrou o mundo esta semana.

No país de Caça-Rato, alguns, como o próprio jogador, escapam graças ao futebol, ao funk, ao rap, ao pagode. Muitos outros ficam no caminho, caça-ratinhos fadados ao limbo dos refugos humanos ou às balas nada perdidas da polícia –quase sempre morte matada antes dos 30.

No país de Caça-Rato, vale o libelo da música de Chico Science, no rastro das imagens do médico e escritor Josué de Castro (1908-73): o homem-caranguejo saiu do mangue e virou gabiru.

No país de Caça-Rato, as vidas são desperdiçadas, velho Bauman, muito mais do que nos exemplos do teu livro sobre o tema. No país de Caça-Rato só há o barulho dos roedores em sinfonia (wagneriana) com a denúncia permanente das tripas.

Neste país, não se diz estou abaixo da linha da pobreza ou qualquer outra frieza estatística, neste país se diz simplesmente “tô no rato”, o mesmo que estar lascado como um maxixe em cruz. O mesmo que estar na pele daquele roedor da fábula de Kafka, o bicho que vê o mundo cada vez mais estreito, sem saída à esquerda e muito menos à direita, restando apenas recorrer à orientação de um gato para não cair na ratoeira. O gato o orienta, civilizadamente, mas o abocanha na sequência.

No país de Caça-Rato, tudo é mesmo diferente. Estádio não é arena, não se sabe quem governa, e o Santa Cruz é muito mais que a seleção Brasileira. É a pátria dos pés-descalços, ouviram do canal do Arruda às margens fétidas e baldeadas.

O dialeto que se fala neste país não entra no Aurélio, mas sim no Liêdo, um sábio recifense, autor, entre outras joias, de “O Povo, o Sexo, a Miséria ou o Homem é Sacana”.

A alta gastronomia no país de Caça-Rato tem o aruá, o sururu –já bem escasso e artigo de luxo–, o mingau de cachorro e o caroço de jaca assado na brasa. O rei do camarote neste país sem fronteiras é conhecido como cafuçu, o avesso do playboy, mas uma criatura que capricha no estilo dentro das suas posses. O jogador do Santa Cruz que dá nome a este país é o príncipe dos cafuçus.

No reino de Caça-Rato, o menino que nada no esgoto no canal do Arruda é apenas uma foto que assombra a classe média. Não se fala outra coisa no país de Caça-Rato: que gente mais besta e limpinha, por que tanto barulho sobre uma cena tão repetida diariamente? O país de Caça-Rato sabe que daqui a pouco ninguém mais se lembra. O país de Caça-Rato funciona à prova de padrão Fifa.

Texto publicado na Folha de S.Paulo

Link:http://www1.folha.uol.com.br/colunas/xicosa/2013/11/1368976-o-pais-de-caca-rato.shtml

 

Contagem regressiva: vem aí o “livro branco”

Daqui a exatos 30 dias, lançaremos A emoção é branca, o segundo volume da Trilogia das Cores. A farra vai ser no bar Mamulengo, na praça do Arsenal, às 18h17min do dia 12 de dezembro, uma quinta-feira. Anotem aí nas respectivas agendas, smartphones, tablets ou cadernetinhas de anotações.

A  gráfica já mandou a prova, devidamente aprovada pelo editor da Sappho Books, e o dito cujo já está sendo impresso em papel de altíssima qualidade. Lamentavelmente, o editor, o senhor Pedro Moura informa que não poderá estar presente devido a uma reuniãozinha de negócio nas Filipinas, marcada de forma equivocada pela sua secretária para o mesmo dia.

Lembrando que o segundo volume incluirá uma seleção de crônicas de 2008 a 2010, ou seja, os nossos melhores textos sobre nossos piores momentos. Vale a pena ler para lembrar um tempo que está ficando para trás, mas que para servir como vacina contra erros futuros precisa estar vivo na memória coral

Em breve maiores informações e material para divulgação.

A sarna somos nós

Nada de extraordinário me aconteceu no dia em que subimos. Preparei um arrumadinho, bebi poucas cervejas em companhia de uns poucos amigos e da família, a chegada ao estádio coincidiu com a do ônibus coral, enfim, nada que mereça um texto. Apenas os procedimentos de rotina para quem vai se estourar de emoção seguida da alegria comum a todos.

E mesmo se testemunhasse feitos curiosos ou apocalípticos,  provavelmente não os teria transformado em prosa. Como observador, não valho grandes coisas. Tudo pode acontecer nas minhas fuças que não estou nem aí. Para transformar pequenos incidentes em crônicas saborosas, Samarone faz isso mais e melhor. Para botar sacanagem no meio, Gerrá é o titular, com a camisa 10 e braçadeira de capitão.

O que eu sou mesmo é chato. Muito chato. Insuportável. Não deixo perco a chance de passar na cara de quem quer que seja, seja lá o que for.

E, desde os dias que antecederam a partida dos 60 mil contra o Betim, tenho percebido um fato incontestável: o Santa Cruz Futebol Clube está merecendo como nunca o apelido que lhe colocaram os bicolores na intenção de ofender. Somos a sarna.

Uma sarna irritante, insistente, de esfolar a pele. Uma sarna que tomou conta da cidade.

Primeiros fomos os próprios corais que espalharam uma energia que vou chamar de eletricidade emocional, um elemento que não se via, mas estava em todas as conversas, antecedendo sérias reuniões de negócios, aflorando nos encontros ocasionais no meio da rua: “E o Santa, sobe?”. Primeiro se perguntava isso para os tricolores, depois esse era o tema inicial de qualquer conversa, em qualquer situação.

O comichão estava em todo canto: o governador, articulando sua candidatura a presidente começava assim os cochichos sigilosos. Era isso que o gari, antes de pegar a vassoura e o balde, perguntava ao dono do fiteiro. Esse era o papo entre o cobrador e o motorista. Nas rádios. No salão de cabelereiro chic do Espinheiro. No boteco do Vasco. No posto de saúde. Na praia. Santa Cruz e sua torcida, o assunto da cidade.

Alvirrubros e rubro-negros se coçaram. De vontade de ir ao jogo. De inveja de uma nação que envergou, mas não quebrou. De admiração, como a testemunhar um soldado voltar do inferno da batalha repleto de cicatrizes, porém vivo e sabendo onde não botar o pé, como escreveu um colunista da revista Trivela.

Sem forçar muito a memória, conheço quatro alvirrubros que foram ao Arruda ver por dentro uma torcida de futebol. Pertinho de mim, nas sociais, estava Gustavo Krause, ex-governador, ex-prefeito e ex-não-sei-o-quê do clube de coração de todo ex-aristocrata.

No facebook, um rubro-negro escreveu em sua página:

Pode parecer ironia, mas não é não. Tô torcendo para o Santa Cruz subir. E não é por “pernambucanidade”, afinal sou baiano. É uma questão de justiça. O Santa fez a melhor campanha e é, de fato, maior que a Terceira Divisão. Por isso os tricolores têm minha solidariedade no domingo. Ah, não espero e nem cobro de volta que a galera do Santa torça pelo … (editado por desrespeitar o manual de redação do blog). Futebol é feito da rivalidade entre vizinhos…

Depois da partida, a coceira continuou, mais intensa inclusive.

Outro, em sua coluna “neutra e objetiva” num jornal, debatia-se para dourar a pílula da provocação e apontar um significado moral na direção oposta do óbvio:

Na hora em que dezenas de torcedores saem de casa carregando um “B” dourado e gigantesco nas mãos – com orgulho e sem constrangimento (…). No linguajar comum dos torcedores rivais, a definição para a cena é de que “isso é coisa de time pequeno”. Como dizer que não é? Os “bês” dourados e corais que foram vistos no Arruda no último domingo refletem sim um Santa Cruz moralmente encolhido.

A escabiose abre feridas, dói, enlouquece o sujeito a ponto dele não enxergar mais nada a meio palmo do nariz. Provavelmente, quando o escriba das palavras acima perceber que se trata exatamente do contrário, será tarde demais. A sarna terá tomado o corpo, a alma, tudo. Encontrei no Google fotos horríveis de gente atacada por essa doença.

Por mim, assumo de uma vez por todas o xingamento como um elogio: nós, tricolores, somos uma doença contagiosa, multiplicada pela miséria, que não mata e sequer aleija, mas que não deixa vítima esquecer dos seus sintomas um só instante.

A ofensa, nesse caso, expõe a pequenez de quem ofende na mesma medida em que revela a grandeza do ofendido.

Domingo tem multidão de novo. A epidemia, pelo jeito, vai continuar.

No sofá de Seu Baptista

Faz mais de um ano que Stanislau, antes de ir ao Arruda, cumpre o mesmo ritual. Passa na casa da namorada. Toma uns aperitivos com o sogro, brinca com Bimbo, conversa com a sogra, dá uns beijos em Sheila, almoça e se manda para o jogo.

Domingo, ele fez tudo igual.

Onze horas já estava sentado no sofá de Seu Irineu, bebendo cerveja, escutando Benito de Paula. Seu Irineu é aposentado da polícia, é fã de Nelson Gonçalves, Noite Ilustrada e Benito.

Dona Odete, devota de Nossa Senhora da Penha, serviu uns caldinhos. Bimbo, assustado com alguns fogos, não parava de latir. Sheila usava short branco e uma baby-look da Coralnet.

Quando o velho foi mijar, a garota aproveitou. Amassou carinhosamente o pau do seu amor e, tocando os lábios no orelha dele,  pediu baixinho:

— eu te quero aqui, depois do jogo! Quero comemorar!

Stanislau deu um gole na cerva e beijou a namorada. Bimbo latiu de novo. Tenente Irineu trouxe outra cerva. Benito de Paula cantou na vitrola, “nem tudo pode ser perfeito/ nem tudo pode ser bacana / quero ver o cara sentado na praça / assobiar e chupa cana”. O cheiro do feijão perfumava a casa.

— hoje morre gente. O jogo é um a um. – o Tenente falou.

— eita pai, o senhor já começou, né? – Sheila, reclamou.

Outra rodada de caldinho e Dona Odete avisa que o almoço já está pronto. Bimbo fica parado, olhando para o velho e começa a latir. Vez em quando acontece isso. Do nada, o cachorro cisma com o coroa e, de graça, leva um solavanco.

— sai pra lá, “chei” de xanha!

Era perto de uma hora e saiu a feijoada. Stanislau não conseguia esconder o nervosismo. Engoliu o almoço, tomou mais um litrinho de Skol, se despediu e partiu para o José do Rego Maciel.

A partida começou. Tenente Irineu assiste ao jogo na televisão e com o rádio nas alturas. O velho já tá cheio dos paus.

Dona Odete vez por outra vem perguntar o placar. Sheila rói as unhas, não tira os olhos da TV e o pensa no seu amado.  Bimbo,o  coitado, fica preso na corrente para não importunar o dono da casa.

Na arquibancada, Stanislau esculhamba Siloé. Um gordo perto dele começa a passar mal. A turma grita pelos bombeiros. O gordão diz que já está melhor, foi só um mal-estar.

Termina o primeiro tempo.

Stanislau tá com a boca seca e se lembra da língua da sua amada. Tenente Irineu toma outra dose de uísque. O gordo que passava mal tenta sentar. Sheila manda uma mensagem pro namorado. Um barbudo nas sociais diz que Ewerton Heleno é a pior desgraça que já apareceu no Santa Cruz. Dona Odete trás um pratinho de queijo com azeitona pro maridão.

Começa o segundo tempo.

André Dias quase marca. O estádio treme. Sheila grita. Stanislau levanta as mãos pro céu. Seu Irineu, já pra lá de Bagdá, quase cai para trás na cadeira de balanço.

Vai pra cima dele, Tricolor!

E o Santa foi. Fez 1 a 0. No estádio e na rua de Seu Irineu a alegria era uma só. Abraços, gritos, lágrimas, fogos. Bimbo tava ensandecido, latia feito um lobo. 70 mil apaixonados gritavam juntos numa única voz. Sheila mandava mensagens de amor para o seu príncipe.

O empate trouxe de volta a angustia e o nervosismo. Dona Odete fez suas orações. O gordão chorava feito menino. Cheio dos quequéu, Tenente Irineu não conseguia dizer nada com nada.

Gol de Caça-Rato e a rua virou uma festa só. Parecia noite de final de ano. Som ligado, vizinhos se abraçando, menino correndo…!

Stanislau se mandou pra casa da sua amada.

Seu Irineu roncava na cadeira de balanço. Dona Odete havia ido pra igreja. Bimbo tava solto por dentro de casa. Na rua era carnaval. E Sheila, de cabelinho molhado, mini-saia preta e camisa oficial, estava linda.

Recebeu seu amado com um tremendo beijo de boca. Puxou ele pra cozinha. Stanislau pediu uma cerveja. Ela deu outro beijo. Pegou um litrinho e arrastou ele para o sofá. Ela estava enlouquecida. Começou simular um boquete por cima da bermuda do seu macho. Stanislau botou a maromba pra fora e o boquete ficou ao vivo. Ele deu um gole na cerveja e começou a chupar a orelha da menina. Habilidosamente, Sheila puxou a mão do namorado e botou entre suas pernas. Já sem calcinha, o creme da sua xoxota fez o namorado esquecer o mundo e, ali no sofá de Seu Irineu Baptista, eles comemoram a tal sonhada classificação.

O drible

Para ajudar a relaxar nesta semana que só vai acabar daqui a 3 anos, uma sugestão de leitura do Blog do Santinha em transmissão conjunta com o Caótico.

A descrição do drible de corpo de Pelé no goleiro uruguaio Marzukiewicz que abre O drible, de Sérgio Rodrigues, tem tudo para ser citado exaustivamente sempre que literatura & futebol for tema de debates, oficinas, artigos, mesas redondas e coisas e tais.

Rodrigues acertou a mão e construiu uma abertura inesquecível para seu romance. Se Pelé foi responsável pelo lance mais imprevisível do futebol, jamais um gol perdido foi descrito com tamanha beleza. Ao menos nos parágrafos iniciais do livro, Sérgio Rodrigues esteve à altura de Edson Arantes do Nascimento.

Só um aperitivo: “Congelada, a imagem do velho videoteipe fica distorcida. Parece que o negro de camisa amarela e o branco todo de preto vão colidir, quem sabe se fundir, feixes luminosos tentando esquecer que um dia foram carne”.

A pegada segue firme ao longo de todo romance. Tabelando com Didi, Garrincha ou Vavá, Sérgio Rodrigues conta as idas e vindas de Neto para curar inúmeras feridas e aproximar-se do pai, um outrora famoso cronista esportivo amigo que fez fama e fortuna durante a ditadura militar.

Ao longo do romance, figuras reais como Nélson Rodrigues, seu irmão Mário Filho e Millôr Fernandes reencarnam para interagir com o protagonista Murilo Filho. As aparições dos monstros sagrados da crônica e do jornalismo ocorrem em flashes, coisa rápida o bastante para garantir verossimilhança e encantamento, sem risco que algum deles tome conta do livro. Fez bem o autor. Com gente desse porte, não se brinca.

Se o pai do protagonista bate-bola com Nélson Rodrigues, o personagem do livro de memórias cujos rascunhos ele entrega para o filho Neto revisar, um jogador quase sobrenatural chamado Peralvo, bate-bola com sua-majestade-o-rei-do-futebol.

O_DRIBLEA prosa leve de Rodrigues, que já foi capaz de garantir uma narrativa instigante em Elza, a garota, desta vez soma-se a um maior domínio técnico – bendita seja a experiência. Em nenhum momento, o leitor desgruda-se da trama.

Nada é precipitado, a cortina vai se abrindo aos poucos, num ritmo sedutor, de um jeito tal que dá gosto ter O drible na bolsa para, de vez em quando, abri-lo, ler quatro ou cinco páginas e, em seguida, guardá-lo com calma esperando o silêncio, o sossego e o momento para retomar a leitura.

A história dos desencontros dos Murilos, Filho e Neto, é narrada por uma terceira pessoa tão discreta, discretíssima aliás, que suavemente se revela tão falsa quanto a intenção de Pelé ao correr para receber a bola de Tostão diante da grande área uruguaia. Uma finta de corpo que deixa o leitor sem pernas, embasbacado, porém satisfeito de chegar ao final de um livro que marca com honra um gol de letra ao unir futebol e literatura, duas pontas da vida que andavam soltas.

O drible traz para a ficção a importância que o futebol tem para o Brasil contemporâneo. E, contraditoriamente, também carrega sua desimportância e pequenez diante da dor de menino que o adulto deveras sente.

Festa no morro? Ainda não.

Reinaldo da Galeria convidou Robson Sena. Robson convidou Gerrá, que me convidou. Então convidei Samarone, que farrapou.

Foi só o jogo acabar e lá fomos nós para o galpão da Galeria do Ritmo, a escola de samba de um dos melhores lugares do Recife, o Morro da Conceição, pau-a-pau com a Bomba do Hemetério, Poço da Panela e Brasília Teimosa.

Tricolor não precisa de motivos para subir o Morro, mas nós tínhamos um. E bem forte: acompanhar a escolha do samba-enredo da escola que, no próximo carnaval, vai homenagear o centenário coral. Programa melhor não há para uma noite logo após uma vitória importante.

Foi só descer do ônibus e pescar o diálogo entre dois tricolores devidamente caracterizados e um sujeito todo sorridente, metido a piadista:

– Tão alegrezinhos hoje porque ganharam uma, mas tomem cuidado, viu, sábado que vem é dia de Finados.

– O jogo vai ser domingo, otário.

Bonito pra tua cara. Deu vontade de dizer, mas fiquei na minha e fui passando. Não sou do morro, tava ali emprestado.

Flagra de Robson julgando
Flagra de Robson julgando

Na frente da Galeria, Robson era o amostramento em pessoa na iminência de representar a Minha Cobra no corpo de jurados. Logo ele, que entende tanto de carnaval, mas tão pouco de samba.

Por mim, fiquei mais interessado em ser escalado para ser jurado do evento do sábado que vem, a noite da Mini-Saia. A dona da menor mini-saia vai levar 150 contos para casa. Aceitaria o convite para fazer um julgamento técnico e isento. Gerrá também topou, demonstrando disponibilidade para as causas populares e um desprendimento ímpar. É bem verdade que as nossas respectivas senhoras chiaram um pouco e partiram para ameaças, as mais vulgares possíveis, aliás.

Mesmo assim, continuamos a espera do convite. Ainda dá para reorganizar a agenda para sábado.

O galpão é quente todo. Cobertura de zinco triplicando as consequências do efeito estufa e do, calor humano.

O pisante de um bamba
O pisante de um bamba

Desde que botamos o pé na escola sabíamos que estávamos entre iguais: um sujeito à paisana bateu com a mão espalmada no escudo do meu uniforme cobra coral, distribuindo sementes de poesia: “Não estou assim, mas eu sou assim”. Depois foi até Gerrá e repetiu o que havia me dito.

A galeria é lugar de gente como este tricolor afetuoso que nos fez sentir em casa. E de gente como Naná Santana, mestre de bateria aposentado e que agora sobrevive dando oficinas de percussão para crianças. Com seu pisante de pele de cobra e o passo macio de quem entende do riscado, o sujeito é um bamba.

Também estava lá seu Nininho do Pandeiro, compositor do samba vencedor que diz “Eterno supercampeão guerreiro / sinônimo de devoção / o escudo da sua bandeira / desperta no povo uma louca paixão”.

Ao escutar um elogio à letra do segundo samba a se apresentar, ele se doeu e alfinetou:

– Quero ver é a evolução…

Realmente, o samba rival mais involuía que evoluía, apesar da letra mais ajeitada e da torcida fervorosa que, uma hora depois, se arretaria com o anúncio do resultado a favor da turma de seu Nininho, que, registre-se, também é um senhor passista.

A competição se deu em níveis de civilidade elevados, ao contrário do que acontece nas escolas mais afamadas do Rio de Janeiro, onde o cacete come e o dinheiro corre antes, durante e depois.

Nininho
Nininho do Pandeiro e senhora

Apesar da vitória nos confins de Minas Gerais , o clima não era de euforia. Ou estava todo mundo muito concentrado no samba-enredo ou ninguém tem coragem de cantar vitória antes do tempo. Ou as duas alternativas estão corretas.

Curiosamente, até mesmo os compositores e arranjadores do samba vencedor tiveram de comemorar com o freio de mão puxado. Vão ter de sentar com a comissão de carnaval para “fazer ajustes” na letra. Do lado de fora, gente da diretoria já dizia que o melhor mesmo seria juntar todo mundo e misturar a evolução do samba de Nininho + a poesia do segundo colocado + o refrão arrebatador do terceiro samba.

Se o Morro da Conceição ainda não está comemorando, o melhor que todos os tricolores devem fazer é cruzar os dedos, roer as unhas, fingir que não ganhamos nem o primeiro jogo e imaginar o que virá pela frente.

 

 

 

A torcida ficou enfezada
A torcida ficou enfezada

 

Pense numa quadra de escola bem decorada
Pense numa quadra de escola bem decorada

 

É o sistema nervoso

A quem eu perguntei, a resenha foi parecida com a minha. Robson Sena foi dormir e só ligou o rádio depois das seis horas. Samarone teve falta de ar e taquicardia.

Inácio foi dar uma trepada pra relaxar e esquecer o segundo tempo.

Só sei que meu lombo ainda está dolorido. Parece mais que levei uma pisa.

Mal acordei no domingo e comecei a sentir os sintomas.

Uma sensação de fraqueza. A barriga cheia de gases. Até chicotinho eu tive.

A superstição me mandou vestir a mesma camisa e ir para casa do meu pai. Partida  decisiva pelo rádio tem que ser na moradia de Seu Geraldo. Sempre deu sorte.

O coroa tem 77 anos de estrada e já viu de tudo nesse mundo tricolor coral das bandas do Arruda. Acho que é por isso que ele se mantem calmo. Meia hora antes, ele liga o rádio e começa a cochilar na cadeira de balanço. Parece que nada está acontecendo.

Já eu, não passo nem perto do Sharp.

Almoço, tomo uma cerveja, ligo a televisão e deito no sofá. Fico forçando um sono para ver se desapareço e não escuto a agonia da narração.

Adormeci e acordei com a gritaria na rua.

Gooooooooolllllll, o Sharp berrava no terraço. A mãe gritando “gol do Santa” e a pequena Sofia me abraçando.

Daí pra frente, o corpo foi dando sinais de nervosismo. Fiquei prostrado no sofá, pois se levantasse podia dar azar. Foi surgindo uma dor de cabeça. Pensei em ligar pro Samu. Estava certo que um acidente vascular cerebral tomava conta de mim.

“Mãe, eu acho que estou tendo um derrame”.

“É nada, menino. Isso é o sistema nervoso. Vou fazer um copo de água com açúcar”.

“Eu prefiro uma dose de uísque”.

“Primeiro a água com açúcar. Depois o uísque”.

Tomei a garapa. Em seguida o uísque.

Aquele primeiro tempo não acabava. Bateu um soluço infeliz.

Meu pai se levanta, passa por mim e diz que o time recuou muito. Sinto a barriga embrulhar. Corri pro banheiro. Um jato de água e fezes saiu queimando tudo.

Fim do primeiro tempo. Peguei as meninas, levei minha mãe para igreja e me mandei pra casa. Havia combinado com Inácio de irmos juntos para Galeria do Ritmo, assim que o jogo acabasse.

Cheguei em casa, era umas quinze pras seis. Pergunto a primeira-dama quanto está o jogo.

“Oxi. Nem o rádio liguei. Tou toda me tremendo. Tá quanto?”

“A gente estava vencendo de um a zero. Mas eu vim escutando música.”

De repente um grito na rua: É Santa Cruz nessa porra.

Abracei a família e nos mandamos pro samba.

Betim 0 X 1 Santa Cruz. Cronistas corais se recuperam e prometem textos para hoje à tarde

Amigos corais, ainda não estou em condições físicas e psicológicas de escrever para este afamado Blog do Santinha, sobre a histórica vitória de ontem. Órgãos mais atingidos, assistindo a transmissão pelo rádio: fígado e coração.

O senhor Inácio França quase infartou duas vezes. Depois do jogo, foi à Escola do Samba Galeria do Ritmo, ver a disputa final do samba-enredo do Carnaval 2014 da Escola, que terá como tema o “Centenário Coral”.

O cronista Gerrá Lima está possivelmente em Seu Vital, no Poço da Panela, analisando todos os lances com Naná, o homem da Komby Coral. Ele, a exemplo de Inácio, foi á Galeria do Ritmo, na condição de jurado da disputa do samba-enredo. Suas notas foram tão malucas, que ele foi apelidado pelos moradores do Morro da Conceição de “Pedro de Lara da Galeria”.

Nos resta aguardar.

Respiremos fundo. Estamos bem perto de sair desta desgraça que se chama Série C. A cidade, por sinal, está uma maravilha para andar. Tem tricolor esbarrando um no outro.